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Ferreiro de Bosque Grande

A cada vinte e quatro anos, na aldeia de Bosque Grande, comemorava-se o Banquete das Boas Crianças. Era uma ocasião muito especial, e para celebrá-la era preparado um Grande Bolo, para alimentar as vinte e quatro crianças convidadas. O bolo era bem doce e saboroso, totalmente coberto de glacê de açúcar. Mas lá dentro havia alguns ingredientes muito estranhos, e quem engolisse algum deles obteria o dom de entrar na Terra-Fada...
Está história fascinante de um andarilho que encontra o caminho para o perigoso reino da Terra-Fada está sendo publicada pela primeira vez no Brasil. Esta edição inclui um manuscrito do primitivo rascunho de Tolkien para a história, as ilustrações originais de Pauline Baynes, notas sobre a gênese, a cronologia e o final alternativo da história, e um longo ensaio sobre a natureza da Terra-Fada, tudo inédito até agora.
Estão contidas em Ferreiro de Bosque Grande muitas ligações interessantes com o mundo da Terra-média e também com os demais contos de Tolkien, e nesta “edição ampliada” o leitor finalmente descobrirá a história completa por trás desta importante peça de ficção breve.
Título: Ferreiro de Bosque Grande
Editora: WMF Martins Fontes

Autor: J.R.R. Tolkien
Número de páginas: 178

Hoje é Dia de Ler Tolkien e nada melhor do que aproveitar a data para indicar aqui uma de suas obras. Ferreiro de Bosque Grande foi o último conto publicado pelo autor ainda em vida, em 1967 e teve uma gênese no mínimo curiosa. Enquanto escrevia uma apresentação para uma nova edição do conto de fadas The Golden Key de George Mac Donald, ele percebeu que o exemplo que usava para ilustrar um de seus argumentos havia ganhado vida própria. Tolkien então decidiu deixar que a coisa crescesse, trabalhando no que viria a se tornar este conto por cerca de três anos até finalmente vir a publicá-lo.
O conto se passa em Bosque Grande, um pequeno e pacato vilarejo medieval reconhecido pela capacidade e talento de seus moradores, sendo boa parte deles artificies. Um deles tinha papel de suma importância no cotidiano de Bosque Grande, o Mestre-Cuca. A ele recaia a responsabilidade de preparar a comida para todos os eventos sociais ali organizados sendo um destes o aguardado Banquete das Boas Crianças que só era realizado a cada 24 anos. Para marcar uma ocasião tão rara e especial um Grande Bolo deveria ser preparado pelo Mestre-Cuca e ser servido a 24 crianças da vila. O Grande Bolo deveria ser a prova definitiva e o desafio máximo para o Mestre-Cuca, a sua obra prima culinária a ser lembrada por todos pelos próximos anos até um novo Festival.
Noques, o atual Mestre-Cuca de Bosque Grande, não era um dos mais talentosos e tampouco um dos mais bem dispostos a ocupar o cargo. Boa parte do serviço era desempenhado na verdade pelo seu Aprendiz, mas com a iminente chegada do Festival eles começam a trabalhar nos preparativos para o Grande Bolo. Noques era orgulhoso e tinha um trunfo guardado na manga. No recheio do bolo colocou um ingrediente secreto, recém-descoberto na dispensa da cozinha. E aí chegamos ao Ferreiro referenciado no título do livro, que começa a sua história como uma das 24 crianças participantes do Banquete daquele ano. Ao provar o pedaço do Grande Bolo com o ingrediente secreto ele é agraciado com uma espécie de autorização para adentrar a Terra-Fada. A história então vai se construindo ao longo de alguns anos e de uma forma tão bem arquitetada que se eu não me deter por aqui vou acabar por recontá-la de maneira simplista.
O conto é entremeado de belas ilustrações de Pauline Baynes que me remeteram instantaneamente às iluminuras medievais casando muito bem com toda a ambientação da história. A artista foi amiga pessoal de Tolkien e também é conhecida por ter produzido as ilustrações e mapas originais da série As Crônicas de Nárnia de C. S. Lewis. A edição nacional de Ferreiro de Bosque Grande tem por base a versão extendida organizada pela pesquisadora Verelyn Flieger publicada em 2005 na Inglaterra, e chegou as livrarias em dezembro de 2015 pela WMF Martins Fontes, seguindo o padrão de qualidade das outras obras de Tolkien publicadas pela casa. Exceto pela tipografia, a capa quase minimalista, com uma das ilustrações de Pauline sobre fundo preto, é idêntica a da primeira edição britânica de 1967 e a tradução ficou a cargo do especialista Ronald Eduard Kyrmse, responsável também pelas traduções de quase toda a bibliografia de Tolkien disponível em língua portuguesa.
Apesar de partir de premissas simples o conto abre possibilidades interpretativas imensas e muitos dos tópicos são discutidos no excelente conteúdo extra presente no livro. Particularmente destaco o tema da renúncia experimentado por Ferreiro. Assim como ele, todos nós em algum momento somos impelidos a abdicar dos nossos Paraísos, ou Terras-Fada, cedendo nosso lugar e privilégios para que outros também possam usufruir deles. Aceitar e seguir adiante requer maturidade e pode ser mais difícil do que parece a primeira vista. A incapacidade de se deixar encantar de Noques é outro aspecto fundamental da trama e o vejo sempre que ligamos nosso “piloto automático”, deixando que a vida passe sem darmos atenção a coisas simples mas que a tornariam muito mais saborosa, tal qual as miudezas escondidas no tradicional bolo de Bosque Grande. Há ainda a organização social medieval daquela pequena comunidade, pautada basicamente pelas funções que os indivíduos desempenham nela. Uns são Ferreiros, outros Artífices, outros Tecelões e há a figura do Confeiteiro, que é de suma importância para a coesão e unidade daquele vilarejo. Todos estes papéis são amplamente debatidos por Tolkien posteriormente e é fascinante vê-lo argumentando sobre cada aspecto da vida em Bosque Grande.
O conto em si ocupa apenas uma pequena parte, cerca de um terço, de todo o livro que é então complementado por extras que enriquecem muito a experiencia de leitura. Há desde um posfácio de Verelyn Flieger em que ela compara e relaciona este conto às outras obras de Tolkien, citando fatos e materiais originais além de discorrer sobre as críticas feitas na época de sua primeira publicação, bem como um ensaio do próprio Tolkien no qual ele analisa o seu conto sob um viés acadêmico realçando as características literárias e estilísticas dos contos de fadas, o papel da alegoria, e a sua correlação em sociedades medievais históricas. Há também um esboço sobre os personagens e uma grande linha temporal, algo semelhante às Árvores Genealógicas e ao Conto dos Anos presentes nos Apêndices de O Senhor dos Anéis. Cópias reproduzidas dos esboços datilografados e manuscritos originais bem como a sua transcrição também estão presentes e evidenciam o hábito da revisão constante do autor em suas obras. Isso sem falar na Apresentação feita por Tolkien para o Livro The Golden Key, que o fez ter a ideia para contar essa história, e várias Notas da organizadora ao final explicando pontos importante que de outra maneira poderiam passar batido pelo leitor comum. Mais completo impossível!
Dizer que J. R. R. Tolkien era dono de uma capacidade imaginativa impar é repetir o óbvio. Ferreiro de Bosque Grande fora escrito muito tempo depois de suas principais obras ficcionais e se vale mais de reflexão, maturidade e experiência do que da imaginação que o tornara tão famoso e o faz ser cultuado até hoje. Contudo é impossível não vê-lo como uma homenagem ao mundo de fantasia e imaginação que tanto o inspirou e fascinou em sua juventude. Em Ferreiro de Bosque Grande, Tolkien nos convida a experimentar o que propôs em Árvore e Folha como sendo o que os contos de fadas deveriam ser: histórias sobre aventuras de humanos na terra das fadas. E isso ele sabe fazer valer a pena como poucos.