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Laranja Mecânica

Clássico eterno da ficção científica, Laranja Mecânica é um verdadeiro marco na história da cultura pop e da literatura distópica. Narrada pelo protagonista, o adolescente Alex, esta brilhante e perturbadora história cria uma sociedade futurista em que a violência atinge proporções gigantescas e provoca uma resposta igualmente agressiva de um governo totalitário.
A estranha linguagem utilizada por Alex, conhecida como Nadsat, merece destaque na obra, criada pelo próprio Burgess, fornece ao romance uma dimensão quase lírica.
A trama, que conta a história da violenta gangue de adolescentes que sai às ruas buscando divertimento de uma maneira um tanto controversa, incita profundas reflexões sobre temas atemporais, como o conceito de liberdade, a violência – seja ela social física ou psicológica – e os limites da relação entre o Estado e o Indivíduo.
Ao lado de 1984, de George Orwell, e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, Laranja Mecânica é um dos ícones literários da alienação pós-industrial que caracterizou o século 20. Adaptado com maestria para o cinema em 1972 por Stanley Kubrick é uma obra marcante: depois da sua leitura, você jamais será o mesmo.
Título: Laranja Mecânica
Título Original: A Clockwork Orange
Autor: Anthony Burgess
Tradução: Fábio Fernandes
Editora: Aleph
Ano: 2012 / Páginas: 352


Laranja Mecânica é um livro bastante influente e conhecido e costuma dispensar apresentações pela ampla influência que exerce na cultura pop como um todo. Escrito por Anthony Burgess em 1962 o livro é uma distopia e é aclamado por sua crítica social refinada e também pela atemporalidade dos temas que aborda sobretudo a violência urbana, os limites entre indivíduo e Estado, a liberdade e a juventude.
O livro conta a história de Alex, um jovem adolescente amante de música clássica e líder de uma gangue de delinquentes juntamente com quem promove atos violentos e criminosos, principalmente roubo, agressão física e estupro, tendo como único fim a diversão em madrugadas regadas a leite misturado com drogas sintéticas.
Suas vida sofre uma guinada quando numa dessas noites de violência ele é capturado pela polícia e preso por assassinato. Lá, em troca de uma redução da sua pena, ele se candidata como cobaia de uma nova técnica para a contenção da violência que está sendo desenvolvida pelo Estado, a Técnica Ludovido. O objetivo dela é sensibilizar o paciente pela violência condicionando seus instintos para que eles reajam com um extremo mal estar diante dela. O indivíduo ao fim do tratamento se tornaria totalmente dócil e incapaz de cometer qualquer ato violento, ainda que queira, se tornando assim um modelo de cidadão ideal.
O livro é dividido em três partes e possui ao todo 21 capítulos, sendo narrado na primeira pessoa pelo próprio Alex, é como ouvir um relato das memórias do personagem saindo de sua própria boca e portanto nem tudo que é dito pode ser considerado confiável.
Alex é vil e mau e se orgulha disso e desde o início da sua narrativa somos impelidos a pensar que ele merece pagar por todos os seus atos violentos e crimes, mas quando a medida punitiva adotada ultrapassa todos os limites da liberdade individual em nome de um suposto bem maior para todos percebemos que o Estado foi tão violento quanto o jovem em sua tentativa de conter a criminalidade e passamos a rever essa nossa sede de justiça. É perturbador nos darmos conta de que quando deixamos ou apoiamos que o Estado prive um único indivíduo de um dos seus direitos mais básicos, ainda que pelo bem de todos, todos nós saímos perdendo enquanto sociedade e não há uma garantia sequer de que os próximos a sofrer as consequências disto sejamos nós mesmos. É melhor ter a possibilidade de escolher entre o bem e o mal correndo o risco de optar pelo mal como Alex, do que sequer ter outra opção que não seja o bem e um bem que praticamente nos inviabiliza de sermos nós mesmos dado os efeitos colaterais da técnica empregada. É curioso notar que a única voz dissonante quanto a isto no romance seja a do religioso, o cardeal da prisão é o único a contestar pública e veementemente o uso da Técnica Ludovico e as suas implicações morais e éticas e tendo a concordar com a sua visão sobre o assunto. Os movimentos políticos de oposição ao governo totalitário no livro estavam mais preocupados em se aproveitar do caso de Alex para se autopromover e não tanto com a ética da questão e a preservação do pensamento livre e tampouco com o bem estar social e do indivíduo.
Além da violência exacerbada e do conflito entre indivíduo e estado, outra discussão que se sobressai é a do próprio crescimento e do conflito de gerações, sobretudo quando lemos o capítulo extra excluído da primeira edição norte-americana, mas presente na íntegra aqui. A juventude, em qualquer época que seja, sempre despertou uma certa incompreensão e incômodo por parte das gerações mais velhas. É característica do jovem, seja pelos hormônios em explosão ou pela inexperiência com o horizonte adulto que se desenha a frente, o confrontamento, a rebeldia e o inconformismo. Alex é em essência um retrato dessa fase da vida, é alguém testando os próprios limites, gozando ao máximo da liberdade e da própria inconsequência. Ao final, sem que ninguém o diga ou o force, ele percebe que simplesmente cresceu e que o que fazia já não lhe cabe mais, que já não faz mais sentido se comportar daquela forma, ele está velho. Em seu âmago a maturidade despertou e sepultou aquilo que a juventude representava para ele. Não há como não sentir uma certa empatia por ele neste ponto e ao mesmo tempo recordar que até bem pouco tempo eu também era cheio de certezas, daquelas que apenas a juventude é capaz de nos fazer ter. Ler Laranja Mecânica, de certa forma, é também penetrar o drama incerto e quase cruel da adolescência e a sua transição para a vida adulta e talvez seja isso o que torne Alex um personagem adorável, ainda que detestável.
Pelas inúmeras referências na cultura pop, sobretudo na música e por saber da existência da adaptação para o cinema de Stanley Kubrick, diretor que admiro sobretudo pela adaptação de 2001: Uma Odisséia no Espaço, um outro clássico moderno, sempre nutri uma curiosidade por Laranja Mecânica. Mas esta era uma obra que me deixava sempre com o pé atrás pela presença duma característica: o nadsat, um dialeto composto de palavras inteiramente criadas ou adaptadas pelo autor para emular um conjunto de gírias usados pelos adolescentes do seu universo ficcional e inclusive por Alex enquanto narrador o que confere ao livro e ao personagem uma voz própria e bem característica. Achei que encontraria um texto truncado e hermético cuja compreensão plena fosse reservada apenas aos leitores mais dispostos a fazer pausas constantes para consultar o glossário, mas devo confessar minha surpresa pois não encontrei nada disto e me surpreendi com a cadência e fluidez do texto!
As palavras do nadsat inicialmente causam sim um estranhamento, mas é possível entender todo o contexto de boa parte delas pela narrativa de Alex de modo que consultei o glossário pouquíssimas vezes. Certamente isso também se deve ao cuidado despendido com a tradução para o português, destacado num dos textos extras no qual o tradutor Fábio Fernandes comenta justamente algumas de suas escolhas de tradução.
Vale mencionar que a edição especial comemorativa dos 50 anos da publicação original da editora Aleph vem repleta de textos, artigos e entrevistas que ressaltam a relevância e a influência deste romance ao longo deste período, além de contar com um projeto e acabamento gráficos que fazem jus ao termo “de colecionador” e trazer também ilustrações inéditas de Angeli, Dave McKean e Oscar Grillo, exclusivas da edição brasileira. Destaca-se a presença marcante da cor laranja, a única, além do preto e do branco na obra, bem como a jacket, a capa dura e as páginas do miolo em couche. Sem dúvidas a melhor e mais completa edição deste romance e um item indispensável e de muito bom gosto para a estante de qualquer fã de distopias, de ficção científica e de boas histórias.
Uma simples resenha sequer daria conta de discutir alguns dos muitos aspectos levantados durante a leitura do livro e certamente ele é ainda melhor por não oferecer uma resposta definitiva sobre todos estes temas. Sua relevância se encontra mais na discussão e nas dúvidas que nos desperta e que nos acompanharão por um longo tempo dada a sua atemporalidade do que no drama pessoal de Alex. É uma leitura incômoda e necessária, que como todas as boas distopias, testa nossos limites morais e éticos a todo instante, e da qual é impossível se sentir isento seja de ódio, culpa ou compaixão. E então, o que é que vai ser, hein? Leiam!