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Multiverso X.:13 | 2017: Retrospecto, Planejamentos e o Programa da Hall-e


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Sejam bem-vindos ao primeiro episódio de 2017 do Multiverso X (ao menos oficialmente)! E como manda a tradição, o capitão Ace, a imediata Hall-e, o navegador Airechu e o piloto Julio Barcellos se reuniram para fazer um balanço do primeiro ano de atividades do podcast e comentar suas pretenções para 2017.
Ouça e descubra quem pretende ver ao menos um filme por semana, quem quer ler o mínimo de um livro por mês e quem deixou a meta em aberto para dobrá-la quando alcançada. Fique por dentro do que pode vir em 2017 e opine sobre tudo que puder para tornar o Multiverso cada dia melhor.
Acompanhe-nos, estimado explorador de universos!

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Ilustraverso: Lucas Werneck

Todo mundo ama uma boa capa, um mapa bem feito e ilustrações apaixonantes, sejam elas em livros, grafic novels, guias ilustrados, para usar de papel de parede ou pelo simples prazer de admirar. Porém nem todo mundo costuma dar a valor a pessoa por trás da arte, mas por sorte aqui é diferente. Quem sabe você não descobre aqui a pessoa que vai ser responsável por aquele presente diferenciado ou para concluir/iniciar aquele projeto que está engavetado: uma HQ ou a capa e ilustrações de um bom livro.
Na sessão Ilustraverso o artista e sua arte tem vez e reconhecimento. O artista da vez é um ilustrador cujo o trabalho facilmente estaria emoldurado na minha parede: conheçam e apreciem o trabalho de Lucas Werneck!
Lucas Werneck é um ilustrador e artista de Comic Books, ou popularmente chamados Quadrinhos, brasileiro com uma visível atração por sereias e grande talento. Atualmente trabalha em filiação com o Chiaroscuro Studios, grupo internacionalmente conhecido tanto por seu papel no agenciamento de artistas para grandes editoras como Marvel e DC quanto pela realização de eventos como a CCXP.
Você pode conferir uma amostra da arte aí embaixo e as galerias da artista no Tumblr, DevianArt e em seu Blog, seguí-lo no Twitter, Facebook, Youtube e/ou no Instagram. Aos interessados em um contato profissional para alguma encomenda, isso pode ser feito pelo email: lucas.gwerneck@hotmail.com.


Felizmente, o Leite

Uma prosaica ida até o mercado se transforma numa incrível aventura no mais recente livro infantil do celebrado escritor britânico Neil Gaiman, que coloca um estranho objeto prateado no caminho de um pai que só queria comprar um pouco de leite para o café da manhã. Aliás, aquele disco prateado gigantesco estacionado em plena rua Marshall, com seres verdes um tanto gosmentos e bastante ranzinzas querendo reformar o (nosso) mundo, é só a primeira de muitas surpresas que esperam pelo zeloso pai de família na história, que inclui ainda viagens no tempo e no espaço num balão, um dinossauro inventor, navios piratas, vulcões e outras maluquices. Será que o café da manhã das crianças está a salvo? Com ilustrações incríveis de Skottie Young, Felizmente, o leite é uma história de fantasia com uma boa dose de nonsense e o senso de humor peculiar de Neil Gaiman.
Título: Felizmente, o Leite
Título Original: Fortunately, the Milk
Editora: Rocco Jovens Leitores
Autor: Neil Gaiman
Arte: Skottie Young
Tradução: Edmo Suassuna
Ano: 2016 / Número de páginas: 128


Em Felizmente, o Leite, Neil Gaiman, autor que já dispensa apresentações por aqui, mais uma vez mostra do que é capaz nos presenteando com uma aventura hilariante em que um pai de família comum e um pouco atrapalhado quando este vai até a esquina comprar leite para o café da manhã dos filhos e para o seu chá, pois o mesmo havia acabado e ele se esquecera completamente disto mesmo tendo sido alertado por sua esposa quando ela partira numa viagem de trabalho. Nos cálculos das crianças, esta simples ida ao mercado levou umas mil horas e quando finalmente, com o leite, o pai chegou em casa, eles lhe cobram uma explicação para tamanha demora. O pai então lhes conta uma história mirabolante da aventura que fora conseguir trazê-lo são e salvo para casa.
Nela, ele relata ter sido abduzido por um enorme disco voador prateado, com tripulantes verdes gosmentos de outro mundo com um peculiar gosto por decoração, ter encontrado um antigo Deus vulcão chamado Esplod adorado por uma tribo ancestral, além de ter sofrido ataques de vampiros e encontrado uma patrulha galáctica formada por dinossauros enquanto tentava voltar para o presente a bordo do balão/máquina do tempo de Esteg, um cientista estegossauro e assim, numa aventura atrás da outra ele se vê em apuros dos mais inacreditáveis, até que tudo se amarra num desfecho que põe a prova toda a existência, mas felizmente, havia o leite…
O que mais me fascina nas histórias do Gaiman é a facilidade com que ele consegue te transportar para um outro mundo que, de certa forma, está logo ali, bem diante de você, bastando que cruze a porta da descrença e permita se cativar pela fantasia. No papel de personagem-narrador ele faz isso, lhe tirando por alguns instantes do mundo real e te levando a um outro repleto de possibilidades, das mais absurdas e paradoxais, a mágica está aí e às vezes, esse encanto é tudo o que eu espero duma boa história.
Sendo um livro infantil é natural que a história não seja tão complexa quanto um romance, mas esta está longe de ser bobinha e de menosprezar a inteligência dos pequenos, algo que eles, sem dúvida e com toda razão, considerariam uma afronta deplorável. A prova disto está nas próprias crianças personagens que interrompem a história contada pelo pai, dizendo que aquilo nunca poderia ter acontecido daquela forma ou que aquilo é impossível, mas por fim elas se rendem e embarcam na aventura do pai contribuindo com a adição de novos personagens (onde estão os pôneis mágicos?), situações e para o andamento da história e ao fim, se ainda restar alguma dúvida caberá ao pai provar a veracidade ou não da sua narrativa. Assim, Felizmente, o Leite consegue divertir e entreter também os adultos com alguns bons pontos de virada e um excelente humor nonsense calcado na ação desenfreada e sem limites que me remeteu ora à Alice No País das Maravilhas de Lewis Carroll e ora ao Guia do Mochileiro das Galáxias de Douglas Adams.
Vale destacar ainda a forma como Neil Gaiman trabalha um arranjo familiar não tradicional, colocando desta forma em foco e com a naturalidade devida a questão dos papéis sociais e de gênero. A mãe das crianças é mencionada rapidamente no início e está trabalhando numa conferência apresentando um estudo sobre lagartos e, assim, cabe ao pai cuidar deles e da casa, coisa para a qual ele demonstra não estar totalmente preparado. Me pergunto quantos estariam. O cientista estegossauro Esteg é o melhor exemplo de uma figura materna ao mesmo tempo tradicional e moderna na narrativa, mas acho que é melhor que vocês mesmos descubram o porquê lendo.
Felizmente, o Leite possui duas versões cuja diferença está no ilustrador escolhido. Uma é ilustrada por Chris Riddell e permanece inédita em português, a outra versão, traduzida por Edmo Suassuna e publicada no Brasil com um projeto gráfico bem cuidado pela editora Rocco é ilustrada por Skottie Young. A parceria entre autor e ilustrador é extraordinária, texto e imagens combinam-se de forma harmoniosa e lúdica, pedindo um olhar mais atento aos detalhes e easter eggs escondidos na arte cartunesca e altamente estilizada de Young, cujo portfólio inclui a adaptação de O Mágico de Oz para a Marvel Comics e diversos outros trabalhos para gigantes da indústria do entretenimento.
Caso você já seja fã dos autores, este é o livro ideal para também introduzir os pequenos nas criações de Gaiman e Young. E se você tem filhos, leia para eles! Coloque-se no papel do protagonista, recrie e conte para eles a fantástica jornada para felizmente, trazer-lhes o leite. Enfim, é leitura ideal e recomendada a todos para relaxar, presentear e ler para as crianças que certamente vão se maravilhar!

Moana - Um Mar de Aventuras






Moana, a filha querida do chefe de uma tribo polinésia, é escolhida pelo próprio oceano para reunir uma relíquia mística a uma deusa. Para isso ela precisará zarpar em busca de Maui, um semideus lendário, único capaz de ajudar a salvar seu povo.






Título: Moana - Um Mar de Aventuras
Título Original: Moana
Lançamento/Duração: 2016 - 1h 47 min
Gênero: Aventura/Animação/Comédia
Direção: Ron Clements, Don Hall

Elenco: Auli'i Cravalho, Dwayne Johnson, Rachel House, Temuera Morrison, Nicole Scherzinger, Jemaine Clement, Troy Polamalu


"Mais uma excelente animação da Disney" - eu poderia dizer. "Um filme cativante e encantador" eu poderia acrescentar. Contudo eu estaria sendo simplório ao afirmar tais coisas, pois Moana é isso e um pouco mais. Poxa, o filme me fez passar o dia ouvindo as canções em looping e me deu a minha protagonista Disney favorita, acho talvez qualquer coisa que diga seja pouco! Assim sendo, vamos falar um pouco mais sobre ele.

A nova animação da Disney conta a história de Moana, a adorável protagonista que desde cedo conhece bem os costumes de seu povo e o destino que a aguarda. Como filha do Chefe Tui, Moana sabe que um dia será ela a liderar e cuidar do bem dos habitantes da ilha como a nova chefe, bem como manda a tradição. Desde criança uma forte ligação com o oceano a leva pensar no que há além dos recifes, porém o seu pai é contra qualquer aventura, e tem motivos para isso.
Contudo, quando um mal assola a ilha e os alimentos se tornam parcos, a jovem obstinada - com o apoio de sua avó - parte da ilha atrás de uma lenda: Moana precisa fazer o Semi-Deus Maui devolver o Coração da Deus Te Fiti e para por fim a sombra que assola as ilhas. Juntos vão enfrentar criaturas marinhas, imprevistos, desafios quase impossíveis e o submundo. Terão que aprender a confiar mais um no outro, para enfim salvar a todos.
Esse resumo nem de longe faz jús a trama do filme, mas é quase impossível deixar tudo claro sem entregar spoilers. Moana é uma aventura, uma jornada sobre coragem, auto-descoberta e superação, mas recheada de ação, musicais e momentos cômicos.
Os personagens da animação são fantásticos e carismáticos com destaque, é claro, para a forte e determinada Moana. Como a própria faz questão de destacar, não é uma princesa, mas a filha do chefe de sua tribo e futura líder de seu povo. A jovem, por mais que tenha seus deveres e entenda a importância disso não espera que a solução venha até ela, e também não coloca seus desejos acima dos daqueles a seu redor. Moana é independente, corajosa e decidida, um protagonista totalmente Girl Power e toma a frente de tudo, mesmo sendo seu companheiro de aventuras um semi-deus.
Mas os outros personagens não ficam muito atrás no quesito carisma. Maui, a avó Tala, o porquinho Pua, e até o galo louco Hei Hei, ganham facilmente um lugar de destaque na trama.
Nos quesitos técnicos de animação Moana mantém o fator Disney elevado como deve ser. Desde o visual particular de cada personagem, passando pelas referências visuais advindas dos povos polinésios e o trabalho gráfico, o filme traz um deleite visual para o expectador, além de trazer lembranças de outras obras dirigidas pela dupla a frente do projeto como Hércules e A Pequena Sereia. Mesmo sem dar um ponto sobre qual povo, de qual ilha advêm a inspiração, podemos ver o respeito às culturas polinésias, como os ritos e tatuagens comuns aos Samoanos e os Maori.
E não dá pra falar de animações da Disney e não falar das canções. Nossa, que musicais cativantes! As canções de Moana são musicas muito bem trabalhadas e estão longe de serem infantis, repetitivas, e enfadonhas. O trabalho de composição e arranjos que receberam são notáveis. Aqui abro parenteses para incluir elogios para a versão nacional: tanto execução quanto a localização, que estão em equivalência a versão original no quesito qualidade. Os dubladores Any Gabrielly e Saulo Vasconcelos estão de parabéns, bem como o Fernando Mendonça que interpreta a canção Para Ir Além. E o mesmo pode ser dito das vozes originais de Dwayne "The Rock" Johnson e Auli'i Cravalho. (Dá para conferir ambas as versões das canções no youtube).
E por falar nisso não importa se você gosta mais de dublado ou legendado, se puder assista ambas as versões (duvido que queira ver o filme apenas uma vez, confie em mim). 
Por fim, digo com certeza absoluta é um filme cativante e divertido, que consegue dosar perfeitamente ação, dramas, comédia e aventura sem quebrar ritmo, cada qual seu devido momento. Moana entrega para o espectador uma experiência extremamente positiva de entretenimento, capaz de agradar pessoas dos mais variados gostos e colocar um novo personagem Disney entre seus favoritos. É diversão descompromissada e garantida, vale a pena conferir.


Ódio, Amizade, Namoro, Amor, Casamento

“[...] havia alguma coisa errada no modo como pronunciava as palavras. Um sotaque. [...] Alguém comera na mesa e deixara um prato sujo de ketchup ressecado e uma xícara pela metade de café frio.”
Detalhes assim são encontrados quase aleatoriamente nos contos de Alice Munro (1931). São eles, entre tantas outras coisas, que conferem ao leitor a sensação de que está vivendo junto com os personagens cada momento da história. Munro empresta a suas narrativas um cuidado e atenção que só a vida ativa pode proporcionar. Quase não sabemos se estamos lendo ou vivenciando uma experiência, tamanha a veracidade dos lugares, tempos e pessoas.
Por outro lado, lemos frases como esta: "A luxúria que me dera pontadas de dor à noite fora purgada e reorganizada agora como uma ordenada chama-piloto, solícita, esponsal."
A densidade, o fluxo de consciência, a reflexão, a ação incessante e os detalhes vívidos se combinam, em Alice Munro, para formar contos de linguagem extremamente autoral, sempre com temas que não ultrapassam o mais humildemente humano.
Não à toa a autora ganhou o Prêmio Nobel sem jamais ter escrito um romance, feito inédito para a premiação. Seus contos, como dizia Julio Cortázar, ganham do leitor por “nocaute”, golpeando-o bem ali, onde ele é mais parecido com qualquer um e somente consigo mesmo. - Noemi Jaffe Escritora e crítica literária
Título: Ódio, Amizade, Namoro, Amor, Casamento
Título Original: Hateship, Friendship, Courtship, Loveship, Marriage: Stories
Coleção: Folha Grandes Nomes Da Literatura (vol.27)
Editora: Folha de S.Paulo
Autor: Alice Munro
Tradução: Cássio de Arantes Leite
Ano: 2016 / Número de páginas: 336



Entre todos os 28 volumes da Coleção Folha Grandes Nomes da Literatura, Ódio, Amizade, Namoro, Amor, Casamento de Alice Munro se destaca de imediato por possuir a mais bela e chamativa composição de capa em minha opinião. Algo de romantismo neste casal sob um guarda-chuva dialoga de forma quase mágica ao extenso título do livro composto pelas diversas fases dos relacionamentos e emoções que suscitam de modo que é impossível não notá-lo em meio aos outros volumes. Quis ler pela capa tão logo abri a caixa com a coleção dos correios. Apesar disso o que me fez querer lê-lo ainda mais foi o comentário sobre o poder de machucar que as palavras de Alice Munro em seus contos aparentemente simples têm, conforme foi alertado pela San J. do canal Encarando as Feras e confirmado na sinopse também por Julio Cortázar ao se referir a isto como um verdadeiro nocaute no leitor.
Ódio, Amizade, Namoro, Amor, Casamento é composto por sete contos, não tão curtos e com boas páginas de desenvolvimento, e absolutamente todos são únicos e têm pontos fortes pesando a seu favor em termos de qualidade, impacto e originalidade. Não houve um que eu tenha lido e não tenha saído impressionado ou reflexivo de alguma forma! Para fins de exemplo vou destacar três dos mais interessantes, mas já recomendo a leitura de todos!
"Conforto" sobre um professor ateu que se vê pressionado a ensinar doutrinas religiosas na escola em que leciona. Ele se nega até o momento em que precisa ser afastado do trabalho em decorrência de esclerose lateral amiotrófica e com a piora do seu quadro, decide cometer suicídio. O conto é narrado do ponto de vista de Nina, a esposa, que ao se despedir do marido também busca compreender a profundidade do seu ato de adeus. Particularmente interessante pelo conflito ciência e religião, mas também por abordar a eutanásia, a aceitação da morte e o aspecto de quem fica e precisa continuar a viver apesar de tudo.
"O Que é Lembrado" essencialmente é sobre lembranças, memórias e os segredos de uma mulher idosa e sobre como tudo isso a moldou de alguma forma ao longo de toda a sua vida. O conto também aborda duma forma comovente a amizade e a traição enquanto, imerso neste exercício de memória, nos instiga com uma deliciosa dose sarcasmo.
"O Urso Atravessou a Montanha" narrado com uma delicadeza impressionante é sobre um casal na terceira idade lidando com as complicações do Alzheimer e a forma como essa enfermidade aos poucos afeta e corrói o relacionamento de ambos. Mas nem tudo está perdido pois a doença também abre uma nova possibilidade de relacionamento até então antes impensável para ambos. É na perda da memória que estes companheiros de toda uma vida vão redescobrir o amor em sua forma mais bela, incondicional e repleto de ternura.
Os contos são diversos nos temas, indo do relacionamento amoroso até as complicações com a velhice, a convivência ou as dores do crescimento. Igualmente diversos também são seus personagens, homens e mulheres de diversas idades e substratos sociais, com profissões e personalidades variadas. Como pontos em comum destacaria o fato de serem quase todos narrados ou protagonizados por mulheres, todas complexas e bem trabalhadas em sua singularidade e de serem ambientados na terra natal da autora, o Canadá, ainda que elas se passem tanto em grandes centros urbanos quanto em províncias interioranas, é possível perceber algo tipicamente intrínseco, uma certa unidade bem própria, daquele país. A impressão é a de ser inserido em momentos-chave da vida daquelas pessoas de modo que passamos a acompanhar e a partilhar da vida delas, prestes a presenciarmos alguma grande revelação, ruptura, mudança ou conclusão. Início e fim são relativos e a linearidade nem sempre é necessária quando se faz os recortes certos daquilo que se quer contar. Meros instantes são suficientes e concentram em si toda a imutabilidade daquilo que já foi quanto as possibilidades daquilo que ainda poderá ser.
Alice Munro é considerada uma verdadeira mestra dos contos contemporâneos e já fora traduzida para mais de dez idiomas, além de ter sido premiada diversas vezes ao longo de sua carreira, que inclusive conta com o Nobel de Literatura de 2013, um feito notável pois nos até então 112 anos da premiação aquela foi a primeira vez que a academia sueca premiou um autor que escreve exclusivamente contos. Alice sempre se definiu como uma contista e na ocasião ressaltaram a narrativa afinada, caracterizada pela clareza e pelo realismo psicológico de suas composições. No Brasil, Alice Munro é publicada pelo selo Biblioteca Azul da editora Globo e esta edição da Folha de S. Paulo conta com a mesma tradução de Cássio de Arantes Leite feita para a casa editorial da autora.
Ódio, Amizade, Namoro, Amor, Casamento talvez não seja o tipo de leitura que agrade todo o mundo embora trate em essência de situações e emoções inerentes a quase qualquer pessoa. É preciso se deixar conquistar pela prosa da autora que não se desnuda de forma tão clara e te conduz por várias páginas até te brindar com os desfechos espetaculares, dos quais ou você sairá nocauteado ou no mínimo boquiaberto com os rumos que as histórias dela, aparentemente tão simples podem tomar. É neste quê de cotidiano, talvez até banal diriam alguns, que Alice Munro esconde observações perspicazes, ora sérias e ora irônicas, sobre vários aspectos da nossa própria vida: relacionamentos, admiração, teimosia, memórias, destino, amor, morte... tudo se sobrepõe de maneira avassaladora quando somos convidados pela leitura a nos enxergar nas ações e comportamentos dos personagens, todos tão críveis, reais, falíveis e justamente por isso tão humanos quanto nós. É aqui, nos detalhes que apenas você mesmo perceberia sobre si, nas fraquezas da própria condição humana, que a autora sabe como e certamente vai fazer você sofrer. Não é impressionante o poder da literatura?

Bento Alves & O Ataque ao Templo Positivista

Em maio de 1896, o aventureiro profissional e caçador de recompensas Bento Alves é contatado pela sociedade secreta Parthenon Místico. Seus integrantes revelam a ele que a demoníaca Ordem Positivista gaúcha raptou a médium indígena Vitória Acauã para experimentos desumanos e odientos testes pseudo-científicos. Conseguirá o herói invadir o laboratório subterrâneo e resgatar a jovem vítima dos algozes da Ordem e do Progresso? Releitura dos heróis de Raul Pompeia e Inglês de Souza, este conto deu origem ao universo de Brasiliana Steampunk, série ganhadora do prêmio Fantasy! (Casa da Palavra/LeYa, 2014) com o livro A lição de anatomia do temível dr. Louison.
Brasiliana Steampunk Contos é uma coleção de seis contos interdependentes que trazem por protagonistas os heróis do universo criado por Enéias Tavares. Indicado para aventureiros do oculto e damas ousadas, este conto apresenta aventura, suspense & robóticos ameaçadores, entremeados à carta que Bento Alves escreve ao seu antigo amigo do colégio Ateneu, Sergio. Esta edição conta com apresentação do escritor Felipe Castilho - série Legado Folclórico -, posfácio do autor, edição de Fabio Brust e Inari Jardani Fraton, capa de Poliane Gicele e ilustrações exclusivas de Karl Felippe.
Título: Bento Alves & O Ataque ao Templo Positivista
Autor (a): Enéias Tavares
Editora: EPIC Group - Kindle Unlimited
Número de páginas: 48


Antes de falar sobre o conto em si é preciso informar que apesar de funcionar como uma história independente que irá te proporcionar o entretenimento desejado de sua leitura, o conto aventuresco steampunk carrega em suas entrelinhas um pouco de um universo maior. Caso nunca tenha ouvido falar, ou não tenha lido a sinopse fugindo de algum possível spoiler não-intencional, permita-me apresentar Brasiliana Steampunk, um universo que reinterpreta grandes personagens da literatura brasileira do século dezenove, tal qual uma Liga Extraordinária, a partir de uma roupagem Steampunk. Nas palavras retiradas do site oficial: Nele, as criações fantásticas de Álvares de Azevedo, Inglês de Souza, Raul Pompéia, Aluízio de Azevedo, Machado de Assis e Lima Barreto, entre outros, são realocadas num universo onde a linha divisória entre o real e o ficcional é borrada pelo vapor futurista, Zeppelins cortam o céu esfumaçado de uma decadente Porto Alegre art nouveau.
Introduzo-te no texto dessa forma não para afastá-lo da leitura do conto, muito pelo contrário: quero que fique ciente que há mais para se ler do que apenas um conto caso esteja disposto a isso, mas também quero que fique ciente de que a obra NÃO te obriga a ler mais do que ela para compreender o conteúdo e aproveitá-la. Peço desculpas caso tenha dado a entender o contrário, não foi minha intenção.
Dito isso, podemos ir ao que interessa...
Um aventureiro é contatado por um grupo secreto para invadir um laboratório subterrâneo bem guardado por soldados mecânicos de uma ordem ocultista e resgatar uma jovem vitima de experimentos doentios. Uma trama de ação contada através de uma carta amorosa. Sim, a nossa trama nos é entregue em forma de correspondência, uma carta escrita pelo protagonista Bento Alves a seu amado Sergio e nela, ele nos detalha seu contato com a sociedade de pessoas peculiares do Pathernon Místico e uma de suas aventuras na cidade de Porto Alegre dos Amantes; Para ser mais especifico, a invasão da sede de uma sociedade secreta conhecida como O Templo Positivista e o resgate da jovem Vitória Acauã. 
A proposta de Enéias nos transporta para a linguagem dos tempos de outrora, mas sem grandes dificuldades para compreensão e/ou problemas com ritmo. A leitura é ágil e agradável, te mantem preso na leitura de início ao fim. O formato de carta e a informalidade entre os interlocutores permite que a narrativa mantenha a agilidade pedida para uma história de ação e aventura, mas mantenha o psicológico do personagem narrador sempre próximo e em destaque. 
No posfácio Enéias conta que o conto foi originalmente escrito durante o processo de desenvolvimento do romance A Lição de Anatomia do Temível Doutor Luison, numa estratagema que envolvia submetê-lo a publicação em antologias e revistas literárias como meio de apresentar ao leitor um pouco daquele material que estava por vir. Apesar disso não ter acontecido a priori a produção serviu para que o autor se atentasse para novos elementos e técnicas narrativas que facilitaram o processo de escrita e deixaram o primeiro volume da série de romances mais enxuto. Mais tarde Bento Alves & O Ataque ao Templo Positivista foi disponibilizado gratuitamente no site oficial da série e possuiu capas diferentes da disponível hoje na Amazon (a versão gratuita não se encontra mais disponível, mas seu custo atual é irrisório).  
Um ponto bacana a ser relembrado, é que - como destacado na sinopse da obra - o conto é apenas o primeiro da série de seis contos independentes que trazem como protagonistas os heróis de Brasiliana Steampunk e expandem o universo criado por Enéias Tavares além da série principal. O segundo conto já foi publicado, sobre ele falarei em uma próxima oportunidade, mas que conferir a obra e se interessar pelo universo pode ficar ciente que o universo de Brasiliana Steampunk não deve ficar restrito apenas as páginas dos livros.
A aventura de Bento Alves & O Ataque ao Templo Positivista faz mais do que nos apresentar a este novo universo - ou complementar para aqueles que tenham conhecido Brasiliana Steampunk através do livro A Lição de Anatomia do Temível Doutor Luison. O conto instiga àqueles como eu, traumatizados pelos mais variados motivos, a conhecer um pouco mais sobre a literatura brasileira do século 19; E também a acompanhar os trabalhos do autor para conferir até onde os elogios sobre a sua escrita e versatilidade são verdadeiros, e talvez, quem sabe um dia, unir-se a esse coro. O que é algo que não está muito longe de acontecer...

Belas Maldições

Conforme as Profecias de Agnes Nutter, o mundo vai acabar num sábado. No próximo sábado, e antes do jantar. O que é um grande problema para Crowley, o demônio mais acessível do Inferno e ex-serpente, e sua contraparte e velho amigo Aziraphale, anjo genuíno e dono de livraria em Londres. Eles gostam daqui de baixo (ou, no caso de Crowley, daqui de cima). Portanto, eles precisam encontrar e matar o Anticristo, a mais poderosa criatura do planeta. O problema é que o Anticristo é um garoto de 11 anos e, ao contrário de tudo o que você já tenha visto em algum filme, é um menino que adora seu cachorro, se importa com o meio ambiente e é o filho que qualquer pai gostaria de ter. Além, claro, de ser indestrutível. E, como se ainda não fosse o bastante, eles ainda têm de lidar com o domingo...
Título: Belas Maldições: As Belas e Precisas Profecias de Agnes Nutter, Bruxa.
Título Original: Good Omens
Editora: Bertrand
Autores: Terry Pratchett, Neil Gaiman
Tradução: Fábio Fernandes
Ano: 1998 / Número de páginas: 374


Neil Gaiman já era um roteirista de quadrinhos aclamado pela indústria, mas naquela época poucos autores deste meio ousavam se aventurar na publicação de romances, juntamente com Pratchett que já vinha publicando os primeiros volumes de Discworld, ele foi um pioneiro e sem dúvidas ajudou a abrir uma porta pela qual hoje passam muitos outros autores já que não é mais tão incomum ver roteiristas de quadrinhos também publicando romances próprios. Belas Maldições é o marco inicial dessa pequena revolução num mercado até então bastante conservador e o fruto desta parceria de dois de meus autores favoritos. É claro que algo assim não demorou a chamar a minha atenção e tão logo soube da sua existência também sabia que precisava ler de qualquer jeito e logo!
O livro trata do Apocalipse, um tema bem popular nos anos 1990 em virtude da virada do milênio, obviamente o mundo (ainda) não acabou, mas imagine o que aconteceria se a criatura responsável por sua destruição estivesse mais interessada em brincar em paz com seus amigos ao invés de dar o grande basta final? Essa é a premissa principal deste livro. Belas Maldições teve origem nas páginas de um conto que Gaiman havia iniciado mas não sabia como continuar, e a partir delas, ele e Pratchett do qual já era amigo de longa data, deram sequência na história, publicando-a pela primeira vez no início dos anos 1990.
Nele somos apresentados a diversos personagens que terão um envolvimento com os derradeiros momentos finais da existência. Inicialmente conhecemos Aziraphale, um anjo e Crowley um demônio, que já fora uma serpente, por acaso aquela mesma da história da maçã. Ambos trabalham na Terra para seus respectivos lados na grande disputa entre Céu e Inferno, contudo tendo passado tanto tempo entre os humanos eles acabaram por adquirir hábitos que não previram anteriormente e passaram a gostar muito de viver no meio de nós. Ambos gostam de jantar em bons restaurantes e não raro se encontram para isso e para conversar já que são amigos desde o expurgo do primeiro casal do Éden. Vivendo na Terra, Aziraphale se tornou um amante de literatura e coleciona obras raras e mantém uma livraria especializada em Londres, Crowley adora seu automóvel Bantley, mantido como novo desde que o adquirira no início do século e é o que se pode chamar dum autêntico bon vivant.
Com a iminência do Apocalipse, alguns eventos acontecem, há o nascimento do Anticristo, o filho de Satã numa chuvosa noite num mosteiro de freiras satanistas, contudo, por um descuido, os bebês são trocados e Adam, como ele fora posteriormente batizado, acaba indo parar nas mãos dum casal comum, por quem é criado levando uma vida saudável e comum, numa cidadezinha comum do interior. Ao passo que um outro bebê sem qualquer traço sobrenatural ou talento nato para o mal correndo nas veias vai para a família encarregada de educar aquele que logo deveria se tornar a besta da destruição de tudo que há.
Todos esses imprevistos tão divergentes do livro bíblico do Apocalipse foram previstos por uma bruxa do século XVI em seu livro As Belas e Precisas Profecias de Agnes Nutter, Bruxa o único livro de previsões cem por cento correto já escrito. Anathema Device é uma das descendentes de Agnes Nutter, sendo também uma bruxa ou ocultista como ela prefere se referir, cuja vida é devotada a decifrar as previsões deixadas por sua parenta, sendo este um dos negócios mais rentáveis da família. Obviamente Anathema está preocupada com os eventos futuros pois sua antepassada previra quando seria o Apocalipse e a contar de hoje talvez falte menos de uma semana para isto.
Um dos pontos mais interessantes dessa leitura é essa quebra de expectativas com relação a todo o senso comum que se possa ter do Apocalipse clássico. A mais notável é a falta duma dicotomia bem definida entre bem e mal. Os Anjos não são necessariamente bons, os Demônios às vezes tem seus gestos de nobreza, e no meio da disputa entre eles no Grande Planos cósmico e inefável conduzido por poderosas entidades cósmicas, estamos nós, os humanos e nosso livre-arbítrio, que na maioria das vezes nos prejudica tanto e de formas tão criativas que nenhum dos lados da disputa seria sequer capaz de conceber. Há muitos outros: os não mais Cavaleiros, mas agora Motoqueiros do Apocalipse, o Cão do Inferno que por vontade própria de seu amo não passa dum vira-latas dócil e Adam, o Anticristo, um garoto de onze anos mais preocupado com o bem estar dos seus amigos e nas próximas brincadeiras que terão e assim por diante, numa enorme sucessão de clichês subvertidos para o deleite do leitor!
Para contar essa história, os autores se utilizam de diversos núcleos de personagens atuando a maior parte do tempo de forma independente e fragmentada, num espaço de tempo de poucos dias, já que o Apocalipse está marcado para o próximo Sábado. Então, conforme a trama avança eles são guiados pelos mais diversos motivos até a cidade de Tadsfield, onde um grande clímax e o desenlace final os aguarda.
Há de se destacar o aspecto colaborativo da obra que é ao mesmo tempo familiar aos leitores de Gaiman e Pratchett, mas também é singular à sua própria maneira e isto fica evidente quando se tenta descobrir qual autor escreveu ou pensou em tal cena, personagem etc. Há as várias notas de rodapé, algo bem particular de Terry Pratchett que faz uso extensivo delas também em Discworld, sua aclamada série de fantasia satírica, há digressões, muitas vezes com a finalidade de desencadear uma piada hilária logo a frente, há um personagem MORTE que fala através de letras capitalizadas e está em todo o lugar, há referências literárias e ao ocultismo e assim por diante, mas é impossível saber onde um autor começa e outro termina e vice-versa. Isso torna Belas Maldições único.
Não é um livro perfeito, mas ainda assim vale a leitura, ele consegue divertir com um humor refinado, valendo-se da sátira e da crítica para questionar uma variada gama de assuntos que vai desde as grandes questões ambientais do nosso tempo, pela própria condição humana, passando também pelas nossas reações diante da guerra e da pobreza, e até aquilo que de mais prosaico afeta nosso cotidiano, como a meteorologia, os engarrafamentos e os serviços de telemarketing. É tolo, irônico e ao mesmo tempo mordaz, você lê, ri e então, de forma quase súbita descobre que se encaixaria facilmente nas muitas situações e reagiria de forma semelhante às que são descritas nele e vê que o melhor é rir novamente disto também.
Meu principal incômodo foi a inconstância no ritmo da história, algumas passagens se tornavam demasiado tediosas, seja pelas digressões e notas de rodapé sucessivas, seja pelas quebras ocasionadas pelas muitas mudanças no foco narrativo alternando os diversos núcleos: alguns trazem viradas de roteiro que ficam em hiato até o narrador retomar aquela cena, outras funcionam muito bem como contos curtos e assim por diante. Após este estranhamento inicial com essa forma de contar a história, a trama foi me empolgando e enchendo de expectativa para o seu grande desenlace na metade final e aí o livro mostra que tudo valeu a pena até lá e da melhor maneira possível! Belas Maldições é ideal para ler descompromissadamente, apreciando ao máximo sua ironia e por quê não, o próprio fim de tudo! Sobre este livro, Clive Barker diz que o Apocalipse nunca foi contado de forma tão engraçada, e nunca transbordou tanta alegria e insensatez. Compartilho dessa opinião e recomendo a leitura para os já fãs destes autores e para quem aprecia tramas de fantasia urbana, mas daquelas que não necessariamente se levam tão à sério.