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Ódio, Amizade, Namoro, Amor, Casamento

“[...] havia alguma coisa errada no modo como pronunciava as palavras. Um sotaque. [...] Alguém comera na mesa e deixara um prato sujo de ketchup ressecado e uma xícara pela metade de café frio.”
Detalhes assim são encontrados quase aleatoriamente nos contos de Alice Munro (1931). São eles, entre tantas outras coisas, que conferem ao leitor a sensação de que está vivendo junto com os personagens cada momento da história. Munro empresta a suas narrativas um cuidado e atenção que só a vida ativa pode proporcionar. Quase não sabemos se estamos lendo ou vivenciando uma experiência, tamanha a veracidade dos lugares, tempos e pessoas.
Por outro lado, lemos frases como esta: "A luxúria que me dera pontadas de dor à noite fora purgada e reorganizada agora como uma ordenada chama-piloto, solícita, esponsal."
A densidade, o fluxo de consciência, a reflexão, a ação incessante e os detalhes vívidos se combinam, em Alice Munro, para formar contos de linguagem extremamente autoral, sempre com temas que não ultrapassam o mais humildemente humano.
Não à toa a autora ganhou o Prêmio Nobel sem jamais ter escrito um romance, feito inédito para a premiação. Seus contos, como dizia Julio Cortázar, ganham do leitor por “nocaute”, golpeando-o bem ali, onde ele é mais parecido com qualquer um e somente consigo mesmo. - Noemi Jaffe Escritora e crítica literária
Título: Ódio, Amizade, Namoro, Amor, Casamento
Título Original: Hateship, Friendship, Courtship, Loveship, Marriage: Stories
Coleção: Folha Grandes Nomes Da Literatura (vol.27)
Editora: Folha de S.Paulo
Autor: Alice Munro
Tradução: Cássio de Arantes Leite
Ano: 2016 / Número de páginas: 336



Entre todos os 28 volumes da Coleção Folha Grandes Nomes da Literatura, Ódio, Amizade, Namoro, Amor, Casamento de Alice Munro se destaca de imediato por possuir a mais bela e chamativa composição de capa em minha opinião. Algo de romantismo neste casal sob um guarda-chuva dialoga de forma quase mágica ao extenso título do livro composto pelas diversas fases dos relacionamentos e emoções que suscitam de modo que é impossível não notá-lo em meio aos outros volumes. Quis ler pela capa tão logo abri a caixa com a coleção dos correios. Apesar disso o que me fez querer lê-lo ainda mais foi o comentário sobre o poder de machucar que as palavras de Alice Munro em seus contos aparentemente simples têm, conforme foi alertado pela San J. do canal Encarando as Feras e confirmado na sinopse também por Julio Cortázar ao se referir a isto como um verdadeiro nocaute no leitor.
Ódio, Amizade, Namoro, Amor, Casamento é composto por sete contos, não tão curtos e com boas páginas de desenvolvimento, e absolutamente todos são únicos e têm pontos fortes pesando a seu favor em termos de qualidade, impacto e originalidade. Não houve um que eu tenha lido e não tenha saído impressionado ou reflexivo de alguma forma! Para fins de exemplo vou destacar três dos mais interessantes, mas já recomendo a leitura de todos!
"Conforto" sobre um professor ateu que se vê pressionado a ensinar doutrinas religiosas na escola em que leciona. Ele se nega até o momento em que precisa ser afastado do trabalho em decorrência de esclerose lateral amiotrófica e com a piora do seu quadro, decide cometer suicídio. O conto é narrado do ponto de vista de Nina, a esposa, que ao se despedir do marido também busca compreender a profundidade do seu ato de adeus. Particularmente interessante pelo conflito ciência e religião, mas também por abordar a eutanásia, a aceitação da morte e o aspecto de quem fica e precisa continuar a viver apesar de tudo.
"O Que é Lembrado" essencialmente é sobre lembranças, memórias e os segredos de uma mulher idosa e sobre como tudo isso a moldou de alguma forma ao longo de toda a sua vida. O conto também aborda duma forma comovente a amizade e a traição enquanto, imerso neste exercício de memória, nos instiga com uma deliciosa dose sarcasmo.
"O Urso Atravessou a Montanha" narrado com uma delicadeza impressionante é sobre um casal na terceira idade lidando com as complicações do Alzheimer e a forma como essa enfermidade aos poucos afeta e corrói o relacionamento de ambos. Mas nem tudo está perdido pois a doença também abre uma nova possibilidade de relacionamento até então antes impensável para ambos. É na perda da memória que estes companheiros de toda uma vida vão redescobrir o amor em sua forma mais bela, incondicional e repleto de ternura.
Os contos são diversos nos temas, indo do relacionamento amoroso até as complicações com a velhice, a convivência ou as dores do crescimento. Igualmente diversos também são seus personagens, homens e mulheres de diversas idades e substratos sociais, com profissões e personalidades variadas. Como pontos em comum destacaria o fato de serem quase todos narrados ou protagonizados por mulheres, todas complexas e bem trabalhadas em sua singularidade e de serem ambientados na terra natal da autora, o Canadá, ainda que elas se passem tanto em grandes centros urbanos quanto em províncias interioranas, é possível perceber algo tipicamente intrínseco, uma certa unidade bem própria, daquele país. A impressão é a de ser inserido em momentos-chave da vida daquelas pessoas de modo que passamos a acompanhar e a partilhar da vida delas, prestes a presenciarmos alguma grande revelação, ruptura, mudança ou conclusão. Início e fim são relativos e a linearidade nem sempre é necessária quando se faz os recortes certos daquilo que se quer contar. Meros instantes são suficientes e concentram em si toda a imutabilidade daquilo que já foi quanto as possibilidades daquilo que ainda poderá ser.
Alice Munro é considerada uma verdadeira mestra dos contos contemporâneos e já fora traduzida para mais de dez idiomas, além de ter sido premiada diversas vezes ao longo de sua carreira, que inclusive conta com o Nobel de Literatura de 2013, um feito notável pois nos até então 112 anos da premiação aquela foi a primeira vez que a academia sueca premiou um autor que escreve exclusivamente contos. Alice sempre se definiu como uma contista e na ocasião ressaltaram a narrativa afinada, caracterizada pela clareza e pelo realismo psicológico de suas composições. No Brasil, Alice Munro é publicada pelo selo Biblioteca Azul da editora Globo e esta edição da Folha de S. Paulo conta com a mesma tradução de Cássio de Arantes Leite feita para a casa editorial da autora.
Ódio, Amizade, Namoro, Amor, Casamento talvez não seja o tipo de leitura que agrade todo o mundo embora trate em essência de situações e emoções inerentes a quase qualquer pessoa. É preciso se deixar conquistar pela prosa da autora que não se desnuda de forma tão clara e te conduz por várias páginas até te brindar com os desfechos espetaculares, dos quais ou você sairá nocauteado ou no mínimo boquiaberto com os rumos que as histórias dela, aparentemente tão simples podem tomar. É neste quê de cotidiano, talvez até banal diriam alguns, que Alice Munro esconde observações perspicazes, ora sérias e ora irônicas, sobre vários aspectos da nossa própria vida: relacionamentos, admiração, teimosia, memórias, destino, amor, morte... tudo se sobrepõe de maneira avassaladora quando somos convidados pela leitura a nos enxergar nas ações e comportamentos dos personagens, todos tão críveis, reais, falíveis e justamente por isso tão humanos quanto nós. É aqui, nos detalhes que apenas você mesmo perceberia sobre si, nas fraquezas da própria condição humana, que a autora sabe como e certamente vai fazer você sofrer. Não é impressionante o poder da literatura?