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Belas Maldições

Conforme as Profecias de Agnes Nutter, o mundo vai acabar num sábado. No próximo sábado, e antes do jantar. O que é um grande problema para Crowley, o demônio mais acessível do Inferno e ex-serpente, e sua contraparte e velho amigo Aziraphale, anjo genuíno e dono de livraria em Londres. Eles gostam daqui de baixo (ou, no caso de Crowley, daqui de cima). Portanto, eles precisam encontrar e matar o Anticristo, a mais poderosa criatura do planeta. O problema é que o Anticristo é um garoto de 11 anos e, ao contrário de tudo o que você já tenha visto em algum filme, é um menino que adora seu cachorro, se importa com o meio ambiente e é o filho que qualquer pai gostaria de ter. Além, claro, de ser indestrutível. E, como se ainda não fosse o bastante, eles ainda têm de lidar com o domingo...
Título: Belas Maldições: As Belas e Precisas Profecias de Agnes Nutter, Bruxa.
Título Original: Good Omens
Editora: Bertrand
Autores: Terry Pratchett, Neil Gaiman
Tradução: Fábio Fernandes
Ano: 1998 / Número de páginas: 374


Neil Gaiman já era um roteirista de quadrinhos aclamado pela indústria, mas naquela época poucos autores deste meio ousavam se aventurar na publicação de romances, juntamente com Pratchett que já vinha publicando os primeiros volumes de Discworld, ele foi um pioneiro e sem dúvidas ajudou a abrir uma porta pela qual hoje passam muitos outros autores já que não é mais tão incomum ver roteiristas de quadrinhos também publicando romances próprios. Belas Maldições é o marco inicial dessa pequena revolução num mercado até então bastante conservador e o fruto desta parceria de dois de meus autores favoritos. É claro que algo assim não demorou a chamar a minha atenção e tão logo soube da sua existência também sabia que precisava ler de qualquer jeito e logo!
O livro trata do Apocalipse, um tema bem popular nos anos 1990 em virtude da virada do milênio, obviamente o mundo (ainda) não acabou, mas imagine o que aconteceria se a criatura responsável por sua destruição estivesse mais interessada em brincar em paz com seus amigos ao invés de dar o grande basta final? Essa é a premissa principal deste livro. Belas Maldições teve origem nas páginas de um conto que Gaiman havia iniciado mas não sabia como continuar, e a partir delas, ele e Pratchett do qual já era amigo de longa data, deram sequência na história, publicando-a pela primeira vez no início dos anos 1990.
Nele somos apresentados a diversos personagens que terão um envolvimento com os derradeiros momentos finais da existência. Inicialmente conhecemos Aziraphale, um anjo e Crowley um demônio, que já fora uma serpente, por acaso aquela mesma da história da maçã. Ambos trabalham na Terra para seus respectivos lados na grande disputa entre Céu e Inferno, contudo tendo passado tanto tempo entre os humanos eles acabaram por adquirir hábitos que não previram anteriormente e passaram a gostar muito de viver no meio de nós. Ambos gostam de jantar em bons restaurantes e não raro se encontram para isso e para conversar já que são amigos desde o expurgo do primeiro casal do Éden. Vivendo na Terra, Aziraphale se tornou um amante de literatura e coleciona obras raras e mantém uma livraria especializada em Londres, Crowley adora seu automóvel Bantley, mantido como novo desde que o adquirira no início do século e é o que se pode chamar dum autêntico bon vivant.
Com a iminência do Apocalipse, alguns eventos acontecem, há o nascimento do Anticristo, o filho de Satã numa chuvosa noite num mosteiro de freiras satanistas, contudo, por um descuido, os bebês são trocados e Adam, como ele fora posteriormente batizado, acaba indo parar nas mãos dum casal comum, por quem é criado levando uma vida saudável e comum, numa cidadezinha comum do interior. Ao passo que um outro bebê sem qualquer traço sobrenatural ou talento nato para o mal correndo nas veias vai para a família encarregada de educar aquele que logo deveria se tornar a besta da destruição de tudo que há.
Todos esses imprevistos tão divergentes do livro bíblico do Apocalipse foram previstos por uma bruxa do século XVI em seu livro As Belas e Precisas Profecias de Agnes Nutter, Bruxa o único livro de previsões cem por cento correto já escrito. Anathema Device é uma das descendentes de Agnes Nutter, sendo também uma bruxa ou ocultista como ela prefere se referir, cuja vida é devotada a decifrar as previsões deixadas por sua parenta, sendo este um dos negócios mais rentáveis da família. Obviamente Anathema está preocupada com os eventos futuros pois sua antepassada previra quando seria o Apocalipse e a contar de hoje talvez falte menos de uma semana para isto.
Um dos pontos mais interessantes dessa leitura é essa quebra de expectativas com relação a todo o senso comum que se possa ter do Apocalipse clássico. A mais notável é a falta duma dicotomia bem definida entre bem e mal. Os Anjos não são necessariamente bons, os Demônios às vezes tem seus gestos de nobreza, e no meio da disputa entre eles no Grande Planos cósmico e inefável conduzido por poderosas entidades cósmicas, estamos nós, os humanos e nosso livre-arbítrio, que na maioria das vezes nos prejudica tanto e de formas tão criativas que nenhum dos lados da disputa seria sequer capaz de conceber. Há muitos outros: os não mais Cavaleiros, mas agora Motoqueiros do Apocalipse, o Cão do Inferno que por vontade própria de seu amo não passa dum vira-latas dócil e Adam, o Anticristo, um garoto de onze anos mais preocupado com o bem estar dos seus amigos e nas próximas brincadeiras que terão e assim por diante, numa enorme sucessão de clichês subvertidos para o deleite do leitor!
Para contar essa história, os autores se utilizam de diversos núcleos de personagens atuando a maior parte do tempo de forma independente e fragmentada, num espaço de tempo de poucos dias, já que o Apocalipse está marcado para o próximo Sábado. Então, conforme a trama avança eles são guiados pelos mais diversos motivos até a cidade de Tadsfield, onde um grande clímax e o desenlace final os aguarda.
Há de se destacar o aspecto colaborativo da obra que é ao mesmo tempo familiar aos leitores de Gaiman e Pratchett, mas também é singular à sua própria maneira e isto fica evidente quando se tenta descobrir qual autor escreveu ou pensou em tal cena, personagem etc. Há as várias notas de rodapé, algo bem particular de Terry Pratchett que faz uso extensivo delas também em Discworld, sua aclamada série de fantasia satírica, há digressões, muitas vezes com a finalidade de desencadear uma piada hilária logo a frente, há um personagem MORTE que fala através de letras capitalizadas e está em todo o lugar, há referências literárias e ao ocultismo e assim por diante, mas é impossível saber onde um autor começa e outro termina e vice-versa. Isso torna Belas Maldições único.
Não é um livro perfeito, mas ainda assim vale a leitura, ele consegue divertir com um humor refinado, valendo-se da sátira e da crítica para questionar uma variada gama de assuntos que vai desde as grandes questões ambientais do nosso tempo, pela própria condição humana, passando também pelas nossas reações diante da guerra e da pobreza, e até aquilo que de mais prosaico afeta nosso cotidiano, como a meteorologia, os engarrafamentos e os serviços de telemarketing. É tolo, irônico e ao mesmo tempo mordaz, você lê, ri e então, de forma quase súbita descobre que se encaixaria facilmente nas muitas situações e reagiria de forma semelhante às que são descritas nele e vê que o melhor é rir novamente disto também.
Meu principal incômodo foi a inconstância no ritmo da história, algumas passagens se tornavam demasiado tediosas, seja pelas digressões e notas de rodapé sucessivas, seja pelas quebras ocasionadas pelas muitas mudanças no foco narrativo alternando os diversos núcleos: alguns trazem viradas de roteiro que ficam em hiato até o narrador retomar aquela cena, outras funcionam muito bem como contos curtos e assim por diante. Após este estranhamento inicial com essa forma de contar a história, a trama foi me empolgando e enchendo de expectativa para o seu grande desenlace na metade final e aí o livro mostra que tudo valeu a pena até lá e da melhor maneira possível! Belas Maldições é ideal para ler descompromissadamente, apreciando ao máximo sua ironia e por quê não, o próprio fim de tudo! Sobre este livro, Clive Barker diz que o Apocalipse nunca foi contado de forma tão engraçada, e nunca transbordou tanta alegria e insensatez. Compartilho dessa opinião e recomendo a leitura para os já fãs destes autores e para quem aprecia tramas de fantasia urbana, mas daquelas que não necessariamente se levam tão à sério.