Nietzsche via em "Memórias do subsolo" a voz do sangue, enquanto para André Gide tratava-se do ponto culminante da carreira de Dostoiévski. George Steiner, por seu turno, qualificou-o de o mais dostoievskiano dos livros e como a suma da obra do escritor. Ao escrevê-las, em 1864, Fiódor Dostoiévski (1821-1881) abria a fase de sua produção que o consagraria como o autor russo mais conhecido fora de seu país, e um dos mais influentes do século XIX.
O vigor de Memórias do subsolo ecoaria não apenas nos grandes romances subsequentes do autor, como "Crime e castigo" e "Os irmãos Karamázov", mas também anteciparia os abismos e paradoxos da melhor literatura da modernidade, de Kafka a Beckett. Mergulho vertiginoso nas profundezas da alma, em que tiradas filosóficas e intrincados mecanismos mentais convivem com uma verve sarcástica e corrosiva, este monólogo de uma consciência atormentada por sua própria agudeza segue hoje provido de força e pertinência. - Irineu Franco Perpetuo Jornalista e tradutor
Título: Memórias do Subsolo
Título Original: Zapíski iz pódpol'ia (Записки из подполья)
Coleção: Folha Grandes Nomes Da Literatura (vol.07)
Editora: Folha de S.Paulo
Autor: Fiódor Dostoiévski
Tradução: Irineu Franco Perpétuo
Ano: 2016 / Páginas: 128
Memórias do Subsolo é minha segunda experiência com uma obra de Dostoiévski e por mais que esperasse por conflitos e provocações dos mais intensos e por uma história nada otimista, confesso que não estava nada preparado para o que encontrei aqui.
Este romance curto, mas pungente é dividido em duas partes com tons narrativos ligeiramente diferentes entre si. Na primeira, intitulada “O subsolo”, com onze capítulos, o narrador e também o protagonista que em momento algum é nomeado, expõe como que num desabafo muito de si e de sua forma de pensar a sociedade e a sua própria existência como indivíduo na mesma. Narrado do seu porão em São Petersburgo, num monólogo aflitivo e amargurado, ele discorre e reflete sobre questões de ordem existencialistas, sendo ora confuso e ora contraditório por um lado, mas também nos deixando intrigados com sua visão acerca de questões como a racionalidade, o livre-arbítrio, o romantismo e muito mais, não nos poupando de opiniões de moral questionável em favor duma verdade que almeja externalizar através de seu texto.
Na segunda, “A propósito da neve úmida” com mais dez capítulos, ele demonstra de forma concreta situações vividas que corroboram algumas das ideias apresentadas no início através do fluxo de consciência. É também aqui que descobrimos o motivo que o levou a reclusão, ao subsolo. Em sua juventude solitária e almejando alcançar um status social elevado ele acaba sendo humilhado por um antigo grupo de colegas pelos quais não era bem quisto e sofre novamente outra humilhação ao envolver-se com uma prostituta pela qual seus sentimentos conflitantes de atração e repulsa o levam a sucumbir ante as próprias convicções, afundando-se ainda mais no abismo que separa a sua alma e consciência daquilo que de fato vive e experiencia.
Ao contrário de Uma Criatura Dócil em que fiquei absolutamente vidrado na narrativa, em Memórias do Subsolo precisei tomar um fôlego extra para avançar na leitura. O fluxo de pensamento incessante, somado a minha pouca empatia com narrador que pouco faz para agradar (e se o fizesse contradizer-se-ia pois isso vai diretamente contra sua opinião acerca do belo e sublime tão enaltecidos e em voga pelo romantismo) e a quase onipresença da sua voz enfadonha em monólogo, sobretudo na primeira parte, exigiram demais de mim, de modo que lê-lo não foi uma experiência das mais prazerosas ou agradáveis.
No entanto não posso deixar de destacar algumas de suas qualidade e compreendo o fascínio que ele foi capaz de despertar em grandes pensadores, como o próprio Nietzsche citado na sinopse acima e tantos outros.
Entre elas, a forma vívida e perturbadora como o autor expõe através de seu protagonista e narrador aquilo que se poderia chamar de o nosso íntimo mais inescrutável, a camada logo abaixo do nosso próprio subsolo, abaixo da casca que apresentamos diariamente a fim de manter uma convivência social minimamente aceitável, desnudando a própria alma e a consciência expondo tudo aquilo em que ela verdadeiramente acredita, pensa, percebe, rejeita e reprime do mundo para além da sua superfície corpórea.
Além disso o próprio conflito entre esta consciência que se vê o tempo toda podada, sendo incapaz de transpor as barreiras do seu próprio subsolo ou o muro, e que se atormenta tanto por ter ciência desta sua limitação quanto por se descobrir incapaz de superá-la por mais que se force a fazê-lo contrariando algumas expectativas sociais é mostrada de forma desesperadora e angustiante. O narrador em tal ponto convence-se de que talvez o melhor seja não fazer nada, é inútil tentar livrar-se do fardo moral que ele mesmo carrega, e que não sendo um homem de ação, é inútil tentar encontrar um sentido na própria vida.
Tais pontos fazem com que esta obra seja considerada uma das precursoras do Existencialismo, escola filosófica cuja principal prerrogativa é a de que o pensamento filosófico começa com o sujeito humano, através das suas ações, sentimentos e vivência individual e não meramente do sujeito pensante. Algumas das ideias abordadas aqui também serviriam de inspiração para outros romances e personagens do próprio Dostoiévski no decorrer de sua carreira como escritor.
A edição da Folha de S. Paulo conta com uma nova tradução vertida diretamente do russo por Irineu Franco Perpétuo para a Coleção Grandes Nomes da Literatura. No Brasil ainda estão disponíveis as edições traduzidas por Boris Schnaiderman para a Editora 34 e Oleg de Almeida para a Martin Claret entre outras.
Além de divertir e entreter, também é papel da literatura incomodar, nos desestabilizar, nos botar mal e em dúvida e isso Memórias do Subsolo faz o tempo todo. É uma obra única, daquelas que dificilmente você vai se deparar novamente tão cedo, o que só corrobora a originalidade e genialidade do autor. Recomendo Memórias do Subsolo para quem se interessa por livros mais reflexivos e com forte inspiração filosófica, com personagens psicologicamente densos em cuja consciência podemos mergulhar profundamente, mas não esperar sair ilesos e também para quem se interessa por livros que se ocupam da condição humana como um todo, mas aqui partindo mais de um ponto de vista do indivíduo para o todo a sua volta.