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Uma Criatura Dócil




Marcado pela humilhação e pelo orgulho, o narrador acompanha a busca progressiva de sua mulher por liberdade.
Quando escreveu esta obra-prima de 1876, Dostoiévski (1821-1881) já é o grande romancista de Crime e castigo (1866), O idiota (1868) e Os demônios (1872).

A edição é enriquecida com desenhos inéditos de Lasar Segall (1891-1957)



Título: Uma Criatura Dócil
Título Original: Кроткая (Krotkaya)
Coleção: Cosac Naify Portátil #18
Editora: Cosac Naify
Autor: Fiódor Dostoiévski
Tradução: Fátima Bianchi
Ilustrações: Lasar Segall
Número de páginas: 128


Ao lado de Tolstói, Dostoiévski é provavelmente um dos autores russos mais conhecidos e mundialmente celebrados. Já faz um tempo que eu estava disposto a experimentar a leitura de algumas das obras deste autor, e estou particularmente interessado nos seus dois mais famosos romances, Crime e Castigo e Os Irmãos Karamazov, mas antes disto queria formar um pouco mais de bagagem como leitor e começar primeiro com obras mais curtas tais como contos. Eis que a oportunidade, ou pretexto, aparece de repente, quando me deparei com Uma Criatura Dócil numa daquelas promoções da Amazon. A curta sinopse disponível na loja não dava muitos detalhes sobre a obra, mas resolvi me arriscar e fiquei impressionado!
Uma Criatura Dócil é uma novela curta, inspirada numa reportagem de jornal lida por Dostoiévski poucos meses antes da sua publicação em 1876 sobre o suicídio de uma costureira moscovita que viera tentar a sorte na capital do império russo. Este trágico caso, como o próprio Dostoiévski afirma posteriormente, assombrou-o por um longo tempo dadas as suas circunstâncias incomuns e o levou a compor esta novela.
Com uma trama centrada em dois personagens e narrada de forma não linear em primeira pessoa pelo dono de uma casa de penhores atormentado com a recente morte de sua esposa, ainda naquela manhã enquanto tenta entender como aquilo pode acontecer e o que a levara aquilo, esta novela de Dostoiévski já se inicia em seu momento de maior clímax. Diante da evidente tragédia ocorrida em sua casa, o narrador entra numa espécie de frenesi buscando justificar-se e compreender a situação aparentemente inexplicável enquanto dirige-se diretamente ao leitor.
Aqui encontramos uma característica dos grandes autores, explorar situações extremas e temas pouco agradáveis de maneiras únicas e até então não pensadas e ainda conseguir levá-las além. É o soar estranho desta apresentação inicial que nos fisga logo nas primeiras linhas da novela, de modo que não conseguimos largar a leitura até terminar e entender tudo. Conforme o fluxo ininterrupto, ao mesmo tempo lúcido e confuso, de pensamentos do narrador prossegue, conhecemos quem eram ele e ela, o que faziam antes, como conheceram-se e principalmente como a batalha silenciosa que travavam diariamente culminaria na morte de um deles ainda que o livro seja passível das mais diversas interpretações subjetivas, o que não é demérito algum.
O narrador, como já mencionado, é o proprietário de uma casa de penhores, e um de seus clientes mais assíduos era uma jovem de dezesseis anos que penhorava seus poucos itens para anunciar seus serviços de governanta num jornal local. Notando que ela se encontrava numa situação difícil, o narrador busca ajudá-la em alguns momentos, pagando mais do que os objetos penhorados valiam e aos poucos desenvolveu um certo interesse e uma intensa curiosidade sobre a garota.
Investigando mais a fundo, ele descobre que ela está à mercê de duas tias gananciosas e que estas inclusive já haviam lhe arranjado um casamento com um viúvo dono de um armazém. Percebendo que isto seria feito a contra gosto da garota, uma mera jogada de oportunidade das tias, o narrador decide intervir e pede a mão dela em casamento. Após ponderar sobre o próprio futuro, a garota opta por casar-se com ele ao invés do lojista.
Casados e morando na mesma casa em que funciona a loja de penhores, a convivência entre ambos inicialmente é tranquila. Contudo, a falta de diálogo, os desacordos e as diferenças logo se acentuam. Joguinhos de dominação, teimosia, desconfiança e ressentimento minam o relacionamento até o ponto em que ele se torna insuportável. A garota dócil se mostra teimosa e orgulhosa (mas será mesmo?) e o narrador é autoritário, paternalista e avarento em suas ações. Como só temos a visão do narrador dos fatos, e como a situação em que se encontra é de transtorno e desespero, não podemos confiar totalmente nele. E assim, essas duas almas de personalidades tão diferentes, vivendo este relacionamento de conveniência, com generosas pitadas de abuso e tirania vão se desgastando e destruindo a si mesmas.
Esta edição faz parte da Coleção Cosac Naify Portátil, uma espécie de coleção de livros de bolso em brochura e com preços acessíveis composta essencialmente por títulos de sucesso do catálogo da extinta editora Cosac Naify. São ideias para transportar e de leitura confortável, mas são pouco resistentes ao manuseio. Esta edição ainda traz uma introdução do autor composta para a revista no qual a novela foi originalmente publicada em 1876, um breve posfácio com notas sobre a história e os desenhos modernistas de Lasar Segall que ilustram algumas páginas.
Meu primeiro contato com Dostoiévski? foi fantástico! Aliás fantástico é o subtítulo que o autor deu a sua narrativa, obviamente não fazendo referência a fantasia irreal e escapista dos contos de fadas, mas àquela fantasia ilusória que emerge do simples existir cotidiano que em suas minúcias pode se mostrar tão instigante, perigoso e permeado de mistérios quanto qualquer peça ficcional. É uma leitura fácil, isso me surpreendeu muito e é possível terminá-lo num único dia, mas as suas implicações, ah, estas vão lhe acompanhar ainda por um bom tempo e por mais que busquemos encontrar um ponto positivo naquele desfecho, o mais assustador talvez seja se dar conta de que isto, por mais deprimente que seja, inexiste. Fantástico, ainda que triste. Recomendo Uma Criatura Dócil para quem, assim como eu, quer começar a ler autores russos, para quem gosta de contos curtos, histórias de mistério, suspense, tragédias e intensos dramas conjugais.