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Os Filhos de Anansi

Charlie Nancy tem uma vida pacata e um emprego entediante em Londres. A pedido da noiva, ele concorda em convidar o pai para seu casamento e fazer disso uma tentativa de reaproximação, já que há vinte anos os dois não se falam. Enquanto isso, no palco de um karaokê na Flórida, o pai de Charlie tem um ataque cardíaco fulminante. A viagem de Charlie até os Estados Unidos para o funeral acaba se tornando a jornada de uma nova vida. Charlie não tinha ideia de que o pai era um deus. Menos ainda de que ele próprio tinha um irmão. Agora sua vida vai ficar mais interessante... e bem mais perigosa. Embrenhando-se no território de lendas e deuses pagãos, a poderosa narrativa de Neil Gaiman leva o leitor a mergulhar nessa história fantástica e bem-humorada sobre relações familiares, profecias terríveis, divindades vingativas e aves muito malignas.
Título: Os Filhos da Anansi
Autor: Neil Gaiman 
Editora: Intrínseca
Número de Páginas: 238


Curioso como se forma um certo pré-conceito sobre determinados livros antes mesmo de lê-los. Confesso que tinha um certo receio de ler Os Filhos de Anansi, por achar que seria um livro pesado demais em referências obscuras, dramático demais por lidar com relações familiares e talvez até um pouco assustador e inquietante pelas referências aracnídeas na capa e na sinopse. Como estava errado! E que livro divertido e hilariante!
Em sua trama principal, o livro vai contar a história de Charlie Nancy, um típico londrino comum que está prestes a se casar quando recebe a notícia de que seu pai falecera. A relação entre os dois nunca foi das melhores, Charlie nunca se sentira à vontade na presença do pai, sentia-se constrangido o tempo todo com o jeito de ser despreocupado e displicente do velho sr. Anansi. Esta fatalidade ainda trará mais surpresas para o nosso protagonista. Ele não só descobrirá que tem um irmão, o extrovertido Spider, que nunca conhecera como também que ambos são descendentes de um deus, sendo portanto deuses também. Tudo isso trará inúmeros problemas para a vida de Fat Charlie, apelido dado por seu pai e que ele odeia com todas as forças, mas também o fará trilhar um caminho de autodescoberta, superação e mudanças.
O homem comum, apegado ao próprio cotidiano, sem grandes potenciais e maiores ambições que vê sua vida mudar diante da descoberta do sobrenatural e do fantástico é um tema recorrente nos livros de Neil Gaiman. À princípio Fat Charlie é muito parecido com outros de seus protagonistas como Tristan Thorn de Stardust e com Richard Mayhew de Lugar Nenhum. Há muitas semelhanças também com a forma como Fat Charlie e outros personagens de Neil Gaiman adentram nesta realidade mágica que permeia quase todas as suas histórias, mas nesta o fio condutor se fixa mais numa linha de surrealidade cômica. Fat Charlie faz uma ótima ponte entre nós e esta nova realidade e há um esforço no texto para torná-lo um personagem cativante logo nas primeiras páginas. Me identifiquei muito com o fato dele se sentir constrangido pelas atitudes e comportamentos de seu pai. Não raro também sinto aquela pequena dose de vergonha alheia dos meus familiares, bem como eles também devem sentir de mim, pois acredito que isso seja comum a todos nós em maior ou menor grau.
Além dos protagonistas da família Anansi, destaco também os coadjuvantes que mesmo tendo sido representados de forma caricata para realçar aspectos cômicos, conseguem ser marcantes e experimentar dilemas próprios, cada um à seu modo: temos Grahame Coats, chefe de Fat Charlie, cujos diálogos são todos compostos pelas frases mais clichês que você conseguir lembrar, a Sra. Noah, futura sogra de Fat Charlie, que é tão rígida e apegada a sua própria realidade que até mesmo um Deus teria dificuldades para tentar dobrá-la, Rosie, a namorada de Charlie cuja bondade e vontade de fazer o bem e o certo podem colocar todos a sua volta em situações embaraçosas, a velha Sra. Higgler que assim como eu, bebe literalmente baldes de café, além de Dayse e Maeve Livingston que num arroubo de protagonismo rouba os holofotes num momento crítico!
Confesso que não conhecia nenhuma história do Anansi mitológico antes de ler este livro. Quase sempre descrito como uma aranha inteligente e ardil, ele é personagem e protagonista de várias histórias folclóricas do continente africano e achei positiva a escolha do autor em explorá-lo neste livro. Várias das pausas na narrativa são usadas para contar algumas destas histórias de Anansi, que lembram muito aquelas populares fábulas de animais, e servem para fundamentar o comportamento de vários dos personagens, principalmente os da família Anansi e os outros "deuses animais" que em algum momento no passado já foram trapaceados pelo velho deus aranha. Além destas raízes mitológicas, o livro também é pontuado por muitas referências à própria cultura pop. Há cenas que lembram filmes, outras que lembram livros, shows de TV dos anos 90 e principalmente a música! Por todo o livro canções são referenciadas ou mencionadas diretamente e acredito que seja uma ótima experiência de leitura ler o livro ao som delas de fundo. (Você pode ouvir algumas delas nesta playlist aqui)
É um livro curto, com uma narrativa fluida em terceira pessoa e com apenas 14 capítulos, cujos títulos são bem criativos e até dão pequenos spoilers do que vão contar, tais como "Capítulo Nove: No qual Fat Charlie atende à porta e Spider encontra flamingos" e "Capítulo Treze: Que acaba sendo desfavorável para alguns". A edição mais recente é da Intrínseca e possui uma capa texturizada que é uma delícia de ser manuseada, como extras traz um capítulo inédito e dois textos exclusivos de Neil Gaiman, um sobre sua experiência de escrever sobre os EUA sendo um autor britânico e outro onde ele nos revela de onde tira as suas ideias! Este último imperdível! Filhos de Anansi também possui uma das melhores dedicatórias de todos os tempos, na qual o autor dedica este livro à você, leitor! Não poderia ser melhor!
O fantástico e o mudando se alternam e se deformam durante a leitura. Viagens dimensionais, rituais e deuses cujas formas não podem ser determinadas com exatidão, coexistem e te levam a ter uma experiência surreal com a realidade urbana que estamos acostumados. Essa talvez seja uma das grandes sacadas de Neil Gaiman. É como se o autor o convidasse a suspender toda a sua descrença, convencendo-lhe a dançar no ritmo de uma canção e a deixar que ela lhe conduza pelo grande palco da história. Em seus livros nada é absurdo demais, insólito demais, mágico demais... tudo é literalmente possível e, ainda assim, é capaz de soar incrivelmente coerente!
Já vi e li algumas críticas negativas para este livro, mas eu realmente apreciei a leitura, me diverti em cada parágrafo e se havia defeitos nele, eu estava tão envolvido (absorto até) com a história, rindo de Fat Charlie e de mim mesmo, que sinceramente não percebi e não fizeram diferença. O livro também é tido como uma continuação de Deuses Americanos, mas apesar de haver certas semelhanças entre eles, as tramas são independentes um não requer a leitura de outro. Recomendo Os Filhos de Anansi sobretudo para quem procura uma leitura leve, despretensiosa e divertida.