BEM-VINDO VIAJANTE! O QUE BUSCA NO MULTIVERSO?

Count Zero (Trilogia do Sprawl #2)

Count Zero, de William Gibson, é o segundo volume da Trilogia do Sprawl, uma das séries mais cultuadas da ficção científica. A obra, passada sete anos após os eventos de Neuromancer, continua a apresentar a evolução da Matrix e das inteligências artificiais que a habitam, agora, conhecidas como Deuses Vudus
É nesse universo frenético e superconectado que duas poderosas corporações multinacionais, Maas Biolabs e Hosaka, travam uma guerra pelo controle de uma nova tecnologia, o biochip. Para isso utilizam todos os métodos possíveis de espionagem desde Hackers até violentos mercenários.
Em meio a esse caos futurista, Bobby Newmark, um aspirante a cowboy, acaba entrando de gaiato nessa história. E ele estaria morto, se não fosse a intervenção salvadora de uma misteriosa garota feita de luz. Por causa disso, Bobby – agora, Count Zero- se torna uma pessoa valiosa e é aí que a caçada começa.
Título: Count Zero
Autor: William Gibson
Série: Trilogia do Sprawl #2
Editora: Aleph
Tradutor: Carlos Angelo
Ano de Publicação: 2017 / Páginas: 312


Count Zero é a continuação de Neuromancer e o segundo volume da Trilogia do Sprawl de William Gibson. Publicado originalmente de forma serializada a partir de Janeiro de 1986 na Isaac Asimov's Science Fiction Magazine, o romance foi indicado para os prêmios Locus, Nebula e Hugo e é destacado como um exemplo de narrativa cyberpunk.
No livro acompanhamos de forma intercalada três tramas independentes que aos poucos vão se entrelaçando até culminar num clímax simultâneo em eventos que ocorrem sete anos após aqueles mostrados no livro anterior.
Atualmente, duas poderosas corporações multinacionais, a Maas Biolabs e a Hosaka, se engajam numa disputa pelo domínio de uma nova e poderosa tecnologia, o biochip, utilizando-se de hackers e da matrix além de táticas de espionagem e violência bélica. Cowboys do ciberespaço vêm relatando acontecimentos bizarros na matrix, fantasmas, vozes e presenças que se auto intitulam como divindades vodus passam a fazer parte da rotina daqueles que se aventuram a quebrar as defesas dos sistemas de segurança em busca de dados informáticos valiosos.
É neste contexto que somos apresentados aos protagonistas: Turner, Bobby e Marly. Turner é um mercenário contratado por gente poderosa e influente para missões perigosas. Traído pelos seus colegas de equipe durante uma operação de extração de um alto executivo pivô de uma disputa entre duas zaibatsus, ele acaba morrendo em missão numa explosão catastrófica logo nas primeiras páginas, mas é revivido logo em seguida com avançadas técnicas de clonagem e cópia digital de memórias. Ele é peça importante demais para algumas organizações para simplesmente continuar morto.
Bobby Newmark é um wilson, um cowboy novato, cujo codinome no ciberespaço é Count Zero e que recebe de uma de suas fontes, o traficante Two-a-Day, um novo software hacker para testar. Durante essa tentativa algo dá errado e ele quase morre sendo atacado de volta por poderosos sistemas de defesa e segurança, mas acaba sendo salvo da morte por uma estranha manifestação na matrix na forma de uma garota feita de luz. Sua experiência desperta o interesse de gente poderosa, mas ele logo é contactado por Lucas, Beauvoir e Jackie, que se dedicam a pesquisar as manifestações das deidades vodu na matrix e lhe prometem proteção.
E por fim somos apresentados a Marly Krushkova, uma curadora de arte dona duma pequena galeria em Paris que é contratada pelo bilionário excêntrico Josef Virek para investigar a origem e o criador desconhecido duma série de novas caixas futuristas que emulam o estilo do artista Joseph Cornell.
A profusão de personagens em torno do trio de protagonistas e a demora para as tramas paralelas se entrelaçarem acabou por tornar a leitura arrastada e decepcionante em alguns momentos. Nenhum dos personagens me cativou tanto quanto Molly e Case em Neuromancer, simplesmente não consegui me importar o suficiente com nenhum deles.
Marly e Virek protagonizaram os melhores momentos ao me lembrarem das metáforas e do dilema tênue e conflituoso entre máquina e humanidade. Bobby era um cowboy novato e deslumbrado, que, enredado numa trama muito maior do que a si mesmo, teve que ater-se a uma passividade incômoda sobretudo quando contrastado com Case. E Turner apesar de toda banca de mercenário fodão se perdeu em meio às reviravoltas envolvendo seus aliados e as maquinações obscuras das zaibatsus com as quais fazia jogo duplo. Assim como em Neuromancer, as inteligências artificiais são muito mais interessantes que os humanos também aqui. Numa espécie de evolução daquilo que Neuromancer e Wintermute se tornam no primeiro livro, agora elas existem na matrix como partes distintas fragmentadas e assumem aspectos místicos de figuras do vodu haitiano. Alta tecnologia mesclada ao misticismo produz implicações para lá de interessantes e leva a discussão levantada no livro anterior sobre inteligências artificiais e sua forma de se relacionar com o mundo e a humanidade a um novo nível. Se hoje experimentamos coisas muito semelhantes àquelas mostradas em Neuromancer com os algoritmos e o uso que fazemos diariamente das redes sociais, fico curioso e temeroso do que pode nos esperar num futuro semelhante ao de Count Zero.
Os jargões tecnológicos e conceituais no livro são facilmente assimilados conforme vão sendo citados: decks, simstim, zaibatsus, biochips, wilson, holocraft, arcologias, dermas entre outros,e não se mostraram como os maiores empecilhos para compreensão da trama. O mesmo não pode ser dito sobre as sucessivas autorreferências ao próprio universo que estão lá para compor uma estética de um mundo futurista e que obviamente não é como o nosso, mas que raramente são explicadas. O glossário ao final do livro é de grande ajuda nestes momentos.
Count Zero se mostrou um livro confuso e desafiador do início ao fim. Não há quase nada para se guiar a princípio, apenas a exposição de diversas peças que não se ligam de forma clara ou lógica até o final. Esse caminhar às cegas me incomodou bastante, mesmo tendo conseguido juntar boa parte delas no desfecho. A prosa do Gibson perdeu parte de sua poesia sinestésica em detrimento de acontecimentos rápidos e duma maior quantidade de diálogos e cenas explosivas de ação. Count é alucinante, mas com uma trama desnecessariamente complexa, onde o acaso e o bizarro caminham lado a lado, sem se importar com a presença do leitor.
A edição brasileira mais recente é da Aleph e conta com tradução de Carlos Angelo. Originalmente lançada num box com os demais volumes da Trilogia, ela agora encontra-se disponível também de forma avulsa. Houve uma revisão da tradução e uma adequação dos termos nos três livros para este relançamento, cuidado que merece ser destacado, bem como as novas e belas imagens de capa de Josan Gonzalez e o projeto gráfico assinado pela Desenho Editorial.
Count Zero não é uma leitura das mais indispensáveis ou tão revolucionária quanto seu predecessor, Neuromancer, mas não posso deixar de notar as inovações feitas por Gibson em relação a sua prosa. Pra mim elas até tiraram um pouco do brilho do livro anterior, mas é inegável a ousadia do autor em tentar algo diferente e mais desafiador, tais como as já comentadas características da quebra de linearidade, da fragmentação da trama e a condução para um clímax conjunto das mesmas. Para quem terminou Neuromancer se perguntando como as IAs passaram a se comportar após Wintermute, o que aconteceu com os domínios espaciais da Tessier-Ashpool ou como o mundo cyberpunk e a matrix estão convivendo anos depois, Count Zero traz um pouco de luz sobre estes acontecimentos, enquanto se aprofunda ainda mais na política organizacional das zaibatsus, traz um aspecto místico e religioso para a alta tecnologia e flerta com os limites da arte e daquilo que nos torna humanos. Tudo isso sem preocupação alguma de manter o leitor com os pés no chão. A sensação de lê-lo é a mesma de mergulhar fundo num mundo onde as bases ruíram e nada é mais tão impossível ou estranho demais.