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O Escravo de Capela

“Cada página é como um golpe cruel de chicote. E sai muito sangue!”
RAPHAEL MONTES — Autor de Dias Perfeitos e Jantar Secreto Secreto

Durante a cruel época escravocrata do Brasil Colônia, histórias aterrorizantes baseadas em crenças africanas e portuguesas deram origem a algumas das lendas mais populares de nosso folclore.
Com o passar dos séculos, o horror de mitos assustadores foi sendo substituído por versões mais brandas. Em O Escravo de Capela, uma de nossas fábulas foi recriada desde a origem. Partindo de registros históricos para reconstruir sua mitologia de forma adulta, o autor criou uma narrativa tenebrosa de vingança com elementos mais reais e perversos.
Aqui, o capuz avermelhado, sua marca mais conhecida, é deixado de lado para que o rosto de um escravo-cadáver seja encoberto pelo sudário ensanguentado de sua morte.
Uma obra para reencontrar o medo perdido da lenda original e ver ressurgir um mito nacional de forma mais assustadora, em uma trama mórbida repleta de surpresas e reviravoltas.
Título: O Escravo de Capela
Autor (a): Marcos DeBrito
Editora: Faro Editorial
Número de páginas: 288


Nos últimos tempos a literatura e o folclore nacional tem voltado a se encontrar com regularidade. Das páginas lúdicas dos livros infantis aos contos de terror, passando pelas aventurescas tramas de fantasia juvenis, muitos autores tem buscado reconstruir uma identidade e/ou reinventar os mitos que conhecemos. Talvez um dos mitos mais presentes nessa nova leva literária seja o Saci...
Nas páginas deste livro somos transportados ao período colonial, final do século XVIII, onde a escravatura no Brasil ainda está no seu auge e abolicionismo não passava de "uma ideia tola" trazida da Europa. Na Fazenda Capela, negro não tinha outra obrigação além de trabalhar e nem opção a não ser aceitar o seu destino. E atormentar negros sempre fora um prazer para o sádico Antônio, primogênito do Sr. Batista, que desde a adolescência tornou-se o feitor da fazenda que um dia seria sua, já que o irmão mais novo não tinha o menor interesse nela. Diferente do irmão, Inácio estudara medicina em Coimbra e voltara apenas para uma visita a família, mas em pouco tempo deixa claro em pouco tempo seu desprezo pela segregação e maltrato à vida humana.
Em concomitância, uma nova leva de escravos chega para trabalhar na lavoura de cana, alguns deles recentemente trazidos de África e mal conseguem compreender o idioma de seus senhores. É exatamente isso que coloca Sabola Citiwala em confronto com Antônio: sem entender as ordens do seu feitor, o escravo não obedece as ordens e acaba sendo espancado e chicoteado, e após ser obrigado assistir a missa é levado para a senzala. Lá ele conhece o aleijado Akili, escravo mais antigo da Fazenda Capela e outra vítima da violência extrema do feitor. Determinado a fugir, Sabola irá unir forças ao preto velho para conseguir a desejada liberdade e nem a morte irá impedir que isso aconteça...
Se tem um ponto a ser destacado na estrutura da obra é a fluidez do texto e a forma como ele se torna envolvente. A narração em terceira pessoa nos põe a distancia necessária para acompanharmos tudo o que acontece de um ponto de vista além dos personagens e núcleos. Com uma linguagem simples - com exceção de um ou outro termo utilizado para trazer proximidade com o linguajar da época - e de fácil entendimento e absorção Marcos DeBrito simplesmente nos arrasta pelos acontecimentos da trama sem longas pausas ou rodeios desnecessários. A única exceção talvez esteja no penúltimo capítulo onde reside boa parte das explicações e quebram o ritmo.
A trama, embasada na pesquisa histórica e cultural, nos apresenta uma dura faceta da realidade vivida no período colonial onde os abusos dos senhores de escravos eram regra e a vida humana tinha dois pesos e duas medidas (não que hoje estejamos satisfatoriamente longe disso). Os Cunha Vasconcelos, exceto pelo jovem Inácio, são exemplos perfeitos do que de pior os endinheirados e amorais senhores de terra podiam ser. A postura de Antônio e seu pai por muitos momentos nos fazem questionar a existência de apenas um "monstro" na história tamanho o horror e sofrimento causados por eles. Cenas intensas que chocam, nos revoltam e trazem reflexão, principalmente pela verossimilhança como o real.
A história também vai além dos senhores cruéis, trabalhando mistérios entorno dos personagens, confrontos ideológicos, segredos obscuros, e até arrisca um romance. Num brado de revolta que urge por vingança, o autor não poupa a violência e brutalidade, para recriar o mito do negro de uma perna só como pede uma história de terror regada a sangue.
Apesar de todos os pontos positivos apontados, a minha experiência com a obra foi um tanto diferente das demais relatadas nas resenhas disponíveis em outros sites e blogs. Como se a minha sensibilidade estivesse anestesiada pela triste realidade violenta que nos cerca, ou por já esperar a postura cruel dos personagens conforme arquétipo e período histórico, as cenas que deveriam me chocar não tiveram o efeito esperado. Bem como foi fácil para mim juntar os detalhes da trama e antecipar os acontecimentos vindouros incluindo a conclusão, restando-me uma única surpresa - e não é exagero - dentre tantas planejadas para arrebatar o leitor durante a leitura. Não obstante, isto em momento algum desmerece a obra.
Sobre a edição da obra não há outra opção além de elogiar o trabalho da Faro Editorial. O zelo é visível desde o trabalho gráfico, passando por capa e miolo com acabamento vermelho nas bordas que dão um ar soturno a obra, até a diagramação e revisão. Uma visão bela e aterrorizante, sem sombra de dúvidas.
O Escravo de Capela é uma ótima pra quem busca uma obra de terror daquelas que escorrem sangue a cada virada de página, sem esquecer do clima de mistério que irá ajudar a te prender do inicio ao fim. Prepare-se para sentir-se chocado e impactado pelo que está por vir! Esteja avisado...
Cuidado com o Saci!