'O Rei de Amarelo' é uma coletânea de contos de terror fantástico publicada originalmente em 1895 e considerada um marco do gênero. Influenciou diversas gerações de escritores, de H. P. Lovecraft a Neil Gaiman, Stephen King e, mais recentemente, o escritor, produtor e roteirista Nic Pizzolatto, criador da série investigativa True Detective cujo mistério central faz referência ao obscuro Rei de Amarelo. O título da coletânea faz alusão a um livro dentro do livro - mais precisamente, a uma peça teatral fictícia - e a seu personagem central, uma figura sobrenatural cuja existência extrapola as páginas. A peça 'O Rei de Amarelo' é mencionada em quatro dos contos, mas pouco se conhece de seu conteúdo. É certo apenas que o texto, em dois atos, leva o leitor à loucura, condenando sua alma à perdição. Um risco a que alguns aceitam se submeter, dado o caráter único da obra, um misto irresistível de beleza e decadência. Esta edição reúne, além dos contos do Rei, seis outros que alternam entre o sobrenatural e a realidade, em épocas e geografias diferentes. A introdução e as notas do jornalista e escritor Carlos Orsi, ajudarão novos leitores a mergulhar na bem construída mitologia do autor.
Título: O Rei de Amarelo
Editora: Intrinseca Autor: Robert W Chambers
Número de páginas: 256
Considerada como uma obra prima do horror gótico norte-americano, O Rei de Amarelo de Robert W. Chambers vem influenciando diversos autores de renome desde que fora publicada em 1895 com sua estranha mitologia amarela focada no terror de proporções cósmicas e incompreensíveis. Esta obra deixou marcas profundas em gerações posteriores de autores de terror, fantasia e ficção científica desde Lovecraft e seus mitos de Cthulhu passando por autores contemporâneos como Neil Gaiman e Stephen King e até o roteirista da série de tv True Detective, Nicc Pizzolatto.
O Rei de Amarelo se constitui de dez contos que se interligam por pequenos detalhes tais como o cenário e os nomes de alguns dos personagens, embora nem sempre seja possível descobrir se tratam das mesmas pessoas. Alguns destes contos referenciam uma estranha peça de teatro amaldiçoada em dois atos registrada num livro amarelado com encadernação de pele de cobra. A sua leitura traz consequências perturbadoras para o leitor e é capaz de estilhaçar as mentes mais robustas. Este livro pestilento leva o mesmo nome deste que resenho hoje, O Rei de Amarelo, e é a fonte ficcional de termos como Hastur, Carcosa, o Rei e o Emblema Amarelos frequentemente referenciados em tantas outras obras de horror de outros autores, um conceito semelhante ao que ocorre com o Necronomicon de Lovecraft. A seguir comento brevemente cada um dos contos:
O Reparador de Reputações - é o conto mais complexo em referências à mitologia amarela e a que tem um dos personagens mais exóticos e instigantes de todo o livro, o Dr. Wilde. Conta a história de uma Nova York futurista e macabra e entre seus temas estão a paranoia social e o egoísmo.
A Máscara - aqui os personagens descobrem uma substância que transforma tudo que nela é banhado no mais belo mármore. Trata de amores platônicos, arte e ciência alquímica e parodia a literatura policial em sua estrutura final.
No Pátio do Dragão - é sobre um homem que é assombrado pelo organista da igreja que frequenta, experimentando sucessivos e repulsivos encontros com ele. É o que sugere que Carcosa seja uma espécie de grande pesadelo coletivo e não um lugar de fato.
O Emblema Amarelo - é o quarto e último conto a mencionar diretamente a peça O Rei de Amarelo. Nele um pintor é perturbado por um vigilante sinistro que fica em frente ao seu estúdio e cuja aparência repulsiva lembra um verme de cemitério. Entre os primeiros contos, este foi o meu favorito e o desfecho sobrenatural é instigante e perturbador.
A Demoiselle d’Ys - falcoaria, castelos medievais, viagens no tempo e a consumação de um amor impossível são amarrados neste conto sobrenatural sobre fantasmas. Foi o de leitura mais difícil pelos muitos termos técnicos de falcoaria em francês embora o tom romântico tenha me satisfeito bastante.
O Paraíso do Profeta - trata-se de uma sequência misteriosa de poemas em prosa que desenvolvem o estilo e o tema de uma citação da peça de ficção O Rei de Amarelo que abre o conto “A máscara”. É considerado o ponto de transição entre os quatro primeiros contos, de caráter fantástico, e os cinco últimos, de ambientação mais realista.
A Rua dos Quatro Ventos - é o primeiro dos contos “realistas” do livro, em que nem a peça O Rei de Amarelo e nem eventos sobrenaturais são citados. Muitas das edições da obra de Chambers ignoram completamente estes últimos contos, mas uma leitura cuidadosa revela ligações sutis e interessantes entre estas últimas histórias e as da primeira parte do livro. Nesta, um artista em Paris é atraído para um quarto vizinho por um gato. Pela beleza de seu desenvolvimento que explora em um curto espaço de tempo a relação entre o artista e o animal e pelo final surpreendente é o meu favorito de toda a coletânea.
A Rua da Primeira Bomba - uma história ao mesmo tempo romântica e moderna mostra eventos ocorridos durante o cerco a Paris em 1870. Tem vários pontos de virada e surpreende positivamente no final.
A Rua de Nossa Senhora dos Campos - sobre boêmios americanos românticos em Paris, mostra uma visão romântica de Chambers que rejeita tanto a moral vitoriana da época quanto a visão de mundo decadente. A inocência de um dos protagonistas cativa.
Rue Barrée - também sobre boêmios americanos românticos em Paris e relacionamentos amorosos, possui um final mais ambíguo e poético que o anterior.
Esta edição da Intrínseca possui capa fosca com ilustração de Jean “ZlayerOne” Philippe. A tradução é de Edmundo Barreiros com revisão e notas por Carlos Orsi. Orsi também é autor de uma excelente Introdução na qual nos contextualiza e discorre sobre o cenário literário e histórico, sobre a obra em si, seu autor e as influências deixadas por ambos ao longos dos mais de 120 anos de sua publicação original. Para quem não tem familiaridade com obras do tipo, textos e notas de apoio como estes são essenciais.
É possível que a mudança de tom entre os contos do início para o final do livro desagradem alguns leitores. Há quem diga que o horror descambe para o romantismo, mas considero essa afirmação exagerada e limitada. Quem o conheceu pelas referências da série de TV, na qual a figura do Rei de Amarelo tem considerável destaque, precisa levar em conta que o livro de Chambers influenciou e inspirou o roteirista (o que convenhamos, não é pouca coisa) e que este obedece uma estética própria do seu tempo e um não é adaptação do outro.
O Rei de Amarelo me foi uma grata surpresa e o considerei uma leitura positiva, maravilhosamente complementada pelas notas. Alguns dos contos me lembraram diretamente de outros da Antologia da Literatura Fantástica. É um livro que propositalmente te deixa com uma sensação de estranhamento e boa parte dos contos possuem finais abertos e sujeitos a interpretações das mais variadas, mesmo nos mais realistas. Em alguns você não sabe se os personagens enlouquecem, se apenas passam por um delírio ou pesadelo ou se efetivamente morrem. Sobre a peça fictícia tantas vezes citada e referenciada, é impossível não ficar curioso pelo seu conteúdo e ávido querendo lê-la, não importam quais sejam as consequências. O fato dela só poder ser acessada por trechos e referências nos faz imaginar o que poderia ser o seu conteúdo o que, sem dúvida, contribui para a construção da sua mítica. Para além dela, Chambers nos brinda com uma visão peculiar das sociedades parisienses e nova-iorquinas, com seus jovens artistas e estudantes apaixonados. Horrores cósmicos e amores desesperados, são uma boa mistura!