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Viagem ao Redor da Garrafa

Jornalista britânica com passagens pelos mais importantes veículos do país, Olivia Lang escreve sobre o fluido vínculo existente entre escritores e bebidas, a partir da vida e obra de seis homens extraordinários: F. Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, Tenessee Williams, John Berryman, John Cheever e Raymond Carver. O ensaio, que chega às prateleiras pelo Anfiteatro, selo de ideias e debates da Rocco, figurou nas listas dos livros mais importantes de 2014 dos veículos The New York Times, The Times, Observer, revistas Time e The Economist, entre outros, e foi finalista de dois importantes prêmios do segmento de não ficção, o Costa Biography Prize e o Gordon Burn Prize. No livro, Laing investiga, com pesquisa aprofundada e texto envolvente, por que alguns dos maiores trabalhos literários de todos os tempos foram produzidos por escritores no limiar do alcoolismo, hábito que os fez conquistar, simultaneamente, prestígio profissional e ruína pessoal.
Título: Viagem ao Redor da Garrafa
Título Original: The Trip to Echo Spring
Autora: Olivia Laing
Tradução: Hugo Langone
Editora: Anfiteatro / Rocco
Ano: 2016 / Páginas: 320


““Beba-me”, o champanhe parecia dizer”. É acerca desta fascinante atração exercida pelo álcool que Olivia Laing discorre em Viagem ao Redor da Garrafa, seu primeiro livro publicado no Brasil. Mais precisamente ela aborda a relação quase promíscua entre a bebida e a literatura usando como exemplos as biografias de seis notórios escritores norte-americanos enquanto narra a viagem que empreendeu de New York à Seattle percorrendo quase que a totalidade da extensão leste-oeste dos EUA, passando por diversas localidades nas quais estes escritores beberam, escreveram e viveram.
Olivia é crítica de arte e literatura e colunista de diversos jornais onde escreve, em essência, sobre cultura, arte, literatura e comportamento. Seus livros alcançaram grande sucesso de público e crítica lá fora não apenas pela pertinência e apelo dos seus temas, mas também pela clareza e requinte de sua narrativa que combina autoficção mesclada à biografia de personagens reais. Viagem ao Redor da Garrafa mesmo é um dos que figurou nas listas de mais vendidos de não ficção no ano de seu lançamento, além de ter acumulado diversas indicações para prêmios literários e jornalísticos. E não sem razão.
Publicado no Brasil em 2016 com tradução de Hugo Langone pela Anfiteatro, selo de não ficção com enfoque em ideias e debates da editora Rocco, Viagem ao Redor da Garrafa possui acabamento simples em brochura e traz uma linguagem acessível, que se aproxima mais do ensaio. O livro é composto de oito capítulos, abordando quase um autor em cada, e às vezes até mais, e traz referências e notas ao final, incluindo uma vasta bibliografia e os doze passos adotados pelos Alcoólicos Anônimos. Curiosamente, a autora é também personagem, evitando a distante onisciência de um narrador em terceira pessoa e optando pela proximidade franca da primeira, dialogando diretamente com o leitor, tal como numa conversa descontraída e sem filtros, mas repleta de bom conteúdo.
Viagem o Redor da Garrafa é um livro delicioso e estonteante, é daqueles que não se sai ileso da leitura, mas que traz consigo uma justa promessa de ressaca e dor de cabeça dado o impacto que nos causa na análise profunda sobre o alcoolismo como principal vetor da produção literária, e também da ruína de grandes e renomados escritores. Mesclando dados biográficos, bibliográficos e de sua própria vivência, Olivia vai fundo no tema e não deixa de fora absolutamente nada. De casamentos arruinados, a tentativas de suicídio, passando por festas elegantes que acabam em porres homéricos, por amizades ruindo, pela mais amarga miséria, pelo sofrimento asséptico das casas de internação, as inúmeras recaídas, os hospitais… a espiral parece não ter fim e rodopiamos com a autora ao longo desta viagem, entorpecente e sem firulas desde o “É o seguinte.” do primeiro parágrafo.
Ao contrário do que talvez possa parecer num primeiro momento, este não é um livro irresponsável, do tipo que glamoriza o ato de beber. Olivia é bem consciente da problemática do álcool em nossa sociedade expondo as consequências do abuso e do vício em seu texto de forma contundente. Porémo, ela o faz com sensibilidade, sem julgamentos e condenações desmedidas, tratando a questão como um problema social e de saúde cujas raízes são muito mais profundas e complexas do que pode supor o senso comum.
Bebe-se pelos mais diversos motivos e segundo ela, ainda mais importante do que entender as causas é possibilitar que os dependentes encontrem um meio de permanecer sóbrios, seja através de grupos de apoio como nos Alcoólicos Anônimos, várias vezes citados ao longo do texto, ou até mesmo da arte, principalmente a literatura ou até duma força de vontade extraordinária, do eu, de alguma crença ou grupo, não importa. Quase nunca é fácil, nem sempre é possível, mas fica claro aqui que caminhos existem.
Todos conhecemos alguém que vivencia o problema com o álcool e um livro como este possibilita que olhemos de forma mais atenta e aprofundada para o vício e compreendamos tanto a dificuldade de se livrar dele quanto o quão profundas podem ser as implicações do uso continuado e imoderado. Também nos ajuda a perceber o quão difícil é para o alcoólatra perceber o próprio vício, o quanto ele se apega aos mais diversos e criativos argumentos para negar que tenha um problema. Os autores citados por Olivia eram absurdamente criativos neste quesito. Mas mais do que tudo isso, o livro de Olivia nos desperta empatia por essas pessoas. Compreendendo as suas vidas quebradas, pautadas ora por grandes tragédias, ora pela carência afetiva, pela inadequação social ou tantos outros motivos, é fácil entender porque eles encontraram no álcool uma válvula de escape, e às vezes e ironicamente, até mesmo a boia de salvação em meio ao mar em que se afogavam com suas vidas.
Para além disso, o olhar especializado de Olivia sobre arte e literatura nos instiga a conhecer as obras dos seus personagens reais ao passo que nos entrega uma vasta e rica crítica das mesmas. Dos seis principais autores, conhecia apenas dois (F. Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway, que por sinal eram também fervorosos colegas de copo) e saí da leitura profundamente tocado com o que ela nota no subtexto de autores que até então eu desconhecia completamente. As peças de Tennessee Williams, sobretudo Um Bonde Chamado Desejo e Gata em Teto de Zinco Quente cujas célebres adaptações para o cinema são excelentes, a poesia confessional de John Berryman em The Dream Songs ainda sem tradução para o português, os contos de Raymond Carver cuja tesoura de seu editor à época fez despedaçar a alma deste escritor ao ver como sua obra prima fora tratada como descartável... enfim, é impossível não querer conhecer o que estas pessoas que tiveram vivências tão quebradas, tão problemáticas e tão ricamente humanas colocaram no papel.
Ainda que tenha sido uma leitura difícil e bem menos fluida do que o excelente A Cidade Solitária, talvez até pela autora ainda estar buscando a sua própria voz narrativa num livro mais longo, não poderia deixar de recomendar a todos a leitura do mesmo, seja você um entusiasta da literatura ou um curioso sobre o tema. Encerro com uma citação de um dos poemas de Berryman, quando o eu lírico, indagado sobre o motivo de beber tanto e por tantos anos responde com a maior das fraquezas a seu interlocutor: "Cara, andei com sede." Viagem ao Redor da Garrafa é exatamente sobre esta sede, insaciável, destruidora...