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A Cidade Solitária: Aventuras Na Arte De Estar Sozinho

Autora de Viagem ao redor da garrafa, uma minuciosa e sensível investigação sobre a relação de seis célebres escritores com a bebida, a britânica Olivia Laing se debruça agora sobre outro tema delicado, especialmente nesses tempos de “hiperconexão”.

Em A cidade solitária, a autora mescla uma pesquisa bem fundamentada sobre a solidão, suas causas, sentidos e efeitos, com impressões pessoais sobre o que significa estar sozinho, a partir de sua experiência ao se mudar para Nova York.

Solitária na grande metrópole, Laing passa a explorar a cidade por meio da arte, empreendendo um mergulho profundo em obras e vidas – do comovente Nightwalks, de Edward Hopper, às Cápsulas do Tempo de Andy Wharol, entre outras – para refletir sobre o quanto a solidão pode ser um fardo ou, no caso do artista, uma condição importante para o pleno desenvolvimento da criatividade.
Título: A Cidade Solitária: Aventuras Na Arte De Estar Sozinho
Título Original: Lonely City: Adventures in the Art of Being Alone
Autora: Olivia Laing
Tradução: Bruno Casotti
Editora: Anfiteatro / Rocco
Ano: 2017 / Páginas: 304


Tão sós! O que significa estar, ser e se sentir solitário vivendo numa das maiores megalópoles do mundo? Quando se viu neste estado abandonada em Nova York após o fim precoce de um relacionamento, a britânica Olivia Laing se pôs a investigar a solitude em suas mais diversas formas e fez dela o tema de A Cidade Solitária, seu terceiro e mais recente livro.
Olivia é crítica de arte e literatura e colunista de diversos jornais onde escreve essencialmente sobre cultura, arte, literatura e comportamento. Seus livros anteriores alcançaram enorme sucesso de público e crítica não apenas pela pertinência e grande apelo dos seus temas, mas também pela clareza e requinte de sua narrativa que combina autoficção mesclada à biografia de personagens reais.
Aqui, com uma sensibilidade enorme, mas sem recorrer à pieguice a autora nos leva em um passeio pela biografia e pelas obras de diversos artistas nova-iorquinos que assim como ela foram de algum modo afetados pela solitude em algum momento da vida. A autora faz uma metáfora entre Nova York e a solidão, a qual afirma ser também uma cidade populosa na qual milhões de solitários residem, uns por um tempo e outros por toda a vida. É para todos esses membros uns dos outros nesta enorme cidade solitária que ela dedica seu livro.
O primeiro artista comentado é Edward Hopper, famoso por suas telas realistas com cenas tipicamente urbanas e contemporâneas, com seus jogos de luz e sombra e seus personagens inquietos com o que quase sempre parece ser uma aflição com a melancolia e a solidão desoladora, um vazio imenso e uma ausência do outro salientada pelas barreiras do concreto, das janelas, paredes, do vidro e pelo próprio corpo. Hopper era tímido, introvertido e vivia um relacionamento problemático com a esposa e embora ele detestasse ter a solidão associada às suas obras é impossível enxergá-las e sentí-las doutra forma e talvez seja justamente esse imediato reconhecimento da solidão que torne Morning Sun, Automat, Nightwalks e tantas outras de suas telas tão populares e tão familiares.
No capítulo seguinte, “Meu coração se abre para sua voz”, Olivia foca em Andy Warhol, um dos ícones da pop art, das Latas de Sopa Campbell e das Marilyns, artista e também celebridade e uma vítima da própria fama. Andy era um homem extremamente tímido, com dificuldades de autoaceitação e de se relacionar com os outros, mesmo vivendo cercado de pessoas do circuito underground e da cena artística e intelectual de Nova York na Factory, seu famoso estúdio e ateliê. Olivia dedica um bom espaço para comentar sobre as entrevistas e gravações em áudio feitas por Warhol com um gravador, item que servia de intermediário entre o mundo e o verdadeiro Warhol e não a sua figura pública, alguém vulnerável, humano e intrinsecamente solitário.
A inusitada descoberta póstuma da obra de Henry Darger no prédio onde trabalhou como zelador em Chicago é o tema do capítulo “Os Reinos do Irreal”. Olivia busca remontar quem era tal homem e o que o motivou a retratar o que retratou em suas mais de trezentas telas e colagens e em seu monumental romance de mais de quinze mil páginas, nos levando fundo a um mundo de fantasia perturbador criado como uma contraparte para a solidão da realidade reclusa do artista. Suas telas incômodas e polêmicas reúnem elementos de contos de fadas, crianças em cenários coloridos e encantadores e num mesmo espaço cenas de tortura e de massacres em massa.
A cereja do bolo são os capítulos “Ao Amá-lo” e “No começo do fim do mundo” dedicados a David Wojnarowicz, um artista versátil, mas com um histórico deprimente por ter sido criado por uma família extremamente conservadora e incapaz de compreender a sua homossexualidade e que o submetia aos mais diversos abusos e violência na infância. Na adolescência e vivendo na mais completa miséria ele foi obrigado a se prostituir para sobreviver e contudo o que mais o fazia sofrer era a solidão extrema e para ela a saída que ele encontrou foi através da arte, a arte tornava sua dor tolerável e comunicável. Wojnarowicz foi uma das minhas maiores descobertas na leitura não apenas por suas séries fotográficas, com destaque para Rimbaud in New York, expressão da sua dor solitária e de liberdade, do saudosismo duma infância perdida e das possibilidades de conexão na grande cidade sobretudo entre as populações mais marginalizadas, mas por Wojnarowicz também liderar como ativista um grupo organizado de pessoas soropositivas no auge do preconceito e do mais completo descaso das autoridades americanas na década de 1980. Ele teve as cinzas espalhadas nos jardins da Casa Branca e em vida produziu telas, músicas, filmes, ensaios e críticas de arte, organizou exposições, instalações e performances deixando um extenso legado artístico.
Ao fim do livro, Olivia Laing aproveita para adentrar o mundo da superexposição e hiperconexão dos reality shows e da internet, espaços extremos onde tanto o anonimato quanto a total falta de privacidade nos prometem interação e conexão para além dos limites do público e do privado com qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo, mas mesmo ali, a solidão está presente desencadeando efeitos que ainda não dominamos totalmente. Olivia ainda retorna a Warhol e Wojnarowicz ao falar de forma emocionada e catártica das Time Capsules e da instalação Strange Fruit (for David), ambas sobre vínculos tênues e sobre a efemeridade dos mesmos diante da passagem do tempo e da morte ao término do livro.
Publicado no Brasil com tradução de Bruno Casotti pela Anfiteatro, novo selo de não ficção com enfoque em ideias e debates da editora Rocco, A Cidade Solitária possui acabamento simples em brochura, com capa emborrachada. O livro possui uma linguagem acessível, não é um estudo acadêmico e se aproxima mais dum ensaio, os capítulos são curtos e as referências e notas do texto principal são deixadas para o final, creio que para não atrapalhar a fluidez da leitura. Curiosamente a autora é também personagem evitando a onisciência distante dum narrador em terceira pessoa, ela escreve com a proximidade da primeira, dialogando diretamente com o leitor, sem filtros. Seu livro é como uma reportagem extensa, poética e com uma dose maior de subjetividade que aquela normalmente encontrada no jornalismo.
A Cidade Solitária se mostrou uma leitura das mais gratificantes, sensíveis e empáticas que tive nos últimos tempos. A priori o que me despertou o interesse por ele foi a relação entre a solidão e a arte nas biografias de alguns artistas cujo trabalho eu já conhecia e admirava, sobretudo Hopper e Warhol. Contudo Olivia entrega bem mais do que isso e saí profundamente tocado pela leitura, pelas biografias quase sempre problemáticas dos artistas, pelas interpretações e correlações das obras de arte com a cidade, seus personagens, temas e a sua imensa e aflitiva solidão, além é claro das descobertas que a própria Olivia faz de si durante o período em que lá vivia e escrevia compartilhando conosco muito mais do que sua visão técnica, mas também da sua companhia, sentimentos e solitude.
É possível experienciar em seu texto elegante, sensível e delicado tanto a angústia pela falta de contato e de proximidade quanto o impulso criativo proporcionado justamente por este sentimento. As telas de Hopper, as gravações em áudio de Warhol, o mundo irreal das colagens de Darger e as fotografias de Wojnarowicz, bem como o próprio livro de Laing, são todos expressões da solidão de seus autores, todos tentativas de estabelecer contato, proximidade e sentido frente ao isolamento com o mundo. Para quem se interessa minimamente por arte contemporânea ou pelo tema principal do livro, seja você um solitário em meio a milhões ou não, este livro é para você!