Você já sentiu um gosto de vida controlada em nome do bem social? Já sentiu que o mundo a sua volta parece uma gaiola de felicidade? Ou um manual da vida perfeita? Num mundo desses, todos deveriam ler Admirável mundo novo, de Aldous Huxley (1894-1963). Membro de uma família da elite britânica, envolvida com discussões que iam da teologia ao darwinismo, Huxley inventou esse mundo admirável para denunciar o risco das utopias (o sonho de um mundo perfeito).Título: Admirável Mundo Novo
Sua distopia (o contrário de uma utopia) descreve um futuro horrível fruto de uma utopia que deu errado. Essa utopia é o projeto utilitário. O utilitarismo é a escola ética de maior impacto no mundo contemporâneo, pois elegeu como princípio maior da vida a eliminação do sofrimento e a otimização do bem-estar. Sempre preocupados com a administração pública, os utilitaristas imaginaram um mundo sem contradições. Por isso, em nome da felicidade, sacrificariam a liberdade. Bem-vindos ao nosso mundo. - Luiz Felipe Pondé, Colunista da Folha.
Título Original: Brave New World
Coleção: Folha Grandes Nomes Da Literatura (vol.03)
Editora: Folha de S.Paulo
Autor: Aldous Huxley
Tradução: Lino Vallandro, Vidal Serrano
Ano: 2016 / Número de páginas: 256
Quando se fala em romance distópico, Admirável Mundo Novo é praticamente uma unanimidade, sendo talvez o mais influente e conhecido livro deste gênero e também um dos seus grandes precursores. Escrito por Aldous Huxley ainda nos anos 1930 como uma sátira ao cientificismo e aos governos autoritários tanto de esquerda quanto de direita, ainda hoje o livro surpreende pela atualidade daquilo que conta ao mesmo tempo em que nos assombra com um futuro hipotético sombrio, que de certa forma e sob certos aspectos, já se faz presente.
Neste futuro, após inúmeras guerras, emerge um Estado único que agora engloba todas as antigas nações independentes. O fato mais marcante é que nesta sociedade o ser humano não mais nasce, não há mais a reprodução vivípara, tampouco as figuras paterna e materna, todos os fetos são agora criados em laboratórios imensos como numa grande linha de montagem fabril, seguindo instruções muito específicas da fecundação do óvulo à decantação do feto, que é quando ele sai dos tubos de ensaio e vai para os berçários. Durante este processo e ao longo de toda a vida o indivíduo será então pré-condicionado segundo a sua casta para assumir determinados valores morais, para desenvolver certos gostos e preferências e para se comportar de uma maneira estrita e totalmente pré-definida de modo a cumprir um papel específico dentro da sociedade. Isso tudo é feito para se cultivar a harmonia, o bem estar social e a felicidade plena, a única emoção realmente permitida e estimulada pelo Estado. Não há mais guerras, não há mais crises econômicas, não há nem mesmo frustrações amorosas, pois o pré-condicionamento estimula a promiscuidade em detrimento do amor monogâmico tal qual conhecemos. O sexo é apenas sexo, uma forma de lazer e nada mais, não serve para a reprodução e nem exige qualquer forma de envolvimento emocional. Tudo parece funcionar à perfeição e estar devidamente no seu lugar e quando o indivíduo se sente mal ou incapaz de lidar com alguma emoção ou situação qualquer, basta recorrer ao soma, uma droga potente, fonte de puro prazer, alívio e escapismo, distribuída indiscriminadamente pelo próprio governo.
Na trama, somos aos poucos introduzidos neste mundo e aos seus conceitos básicos enquanto acompanhamos o cotidiano de vários de seus personagens cuja vida parece sempre orientada para o trabalho e a produção. A grande guinada vem com a revelação de que existem reservas naturais de selvagens, ou seja, humanos que ainda vivem, se reproduzem e sofrem na miséria exatamente como era do modo antigo. Tais locais são cercados, vigiados e controlados pelo Estado, mas num deles, por acidente, um filho dum casal das castas mais altas acaba nascendo. Sem receber o devido condicionamento, a criança adquire sua educação dum antigo volume de peças de Shakespeare, onde aprende conceitos como amor, fidelidade, pudor, criatividade e Deus, ou seja, tudo que é há de mais aberrante e anormal aos olhos da sociedade condicionada.
Assim, boa parte do desenrolar dos acontecimentos vai tratar do confronto entre este personagem e sua visão shakespeariana, humana e sensível da vida contra a visão de alguns dos outros membros desta sociedade ideal, condicionada e feliz já previamente apresentada. A obra de Shakespeare tem papel fundamental neste livro e é amplamente referenciada através de citações de suas peças, sobretudo A Tempestade da qual retira inclusive o seu título, servindo como um contraponto ao modelo humano distópico: rígido, inflexível e planejado contra o um que é mais livre, diverso e caótico.
Admirável Mundo Novo choca o leitor por exibir fatos quase palpáveis acerca do mundo hoje através de sua crítica social que não se diluiu em nada desde a época em que fora publicado pela primeira vez. A ditadura da felicidade nunca se fez tão presente, com a propaganda e a moda fomentando os desejos e a sede de consumo através de métodos sofisticados de manipulação e pressão social. O livro ainda nos choca por mostrar também um mundo totalmente artificial, higienizado pela técnica e pelo utilitarismo extremo e sem espaço para a inovação criativa, o livre pensamento e a vivência plena do eu em detrimento de uma coletividade massificada e anestesiada pelo condicionamento estatal e pelo soma.
Foi uma leitura incômoda em certas partes sobretudo pelo pessimismo advindo do confronto entre nossa percepção de mundo e aquilo que o livro mostra. Ainda assim o texto é de fácil leitura e assimilação, ágil e fluido. A alternância de núcleos de personagens é quase cinematográfica e toda a construção de mundo é fascinante, você fica realmente interessado em entender as nuances daquela sociedade enquanto a compara com a nossa e os nossos valores. É uma leitura instigante, com um estilo inteligente e bem particular que expande nossos horizontes e percepção para além do convencional fomentando uma reflexão crítica sobre nós mesmos e o modelo social perfeito e utópico com o qual boa parte de nós sonhamos.
Os diálogos finais em que são explicados o funcionamento do mundo e porque coisas como a religião, a monogamia, a arte e a ciência precisaram ser ou banidas definitivamente ou estarem sob rígido controle estatal é brilhante e por si só já renderia diversos estudos acadêmicos especializados nos campos da filosofia, sociologia e antropologia.
Ao fim, os grandes questionamentos que ficam são os de até onde, enquanto sociedade, estamos dispostos a ir em nome da estabilidade, do bem estar social e da felicidade plena, do que seríamos capazes de abdicar em troca disto e se vale a pena pagar um preço tão alto. Admirável Mundo Novo é uma leitura fundamental e indispensável, sobretudo quando algo tão similar a esta utopia perigosa proposta por Huxley já nos parece tão próximo.