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Review | Coraline

Antes de começar a falar de Coraline, gostaria de admitir que não li tantas histórias do Neil Gaiman quanto gostaria. Ainda assim, me parece bem visível um certo padrão de características na sua escrita, como por exemplo: o tom onírico com elementos que estão entre o sonho e o pesadelo e entre o belo e o terrível, personagens fortes e ao mesmo tempo vulneráveis, e ,é claro, cenários estranhos, encantadores e magnéticos com toques generosos de surrealismo.
Essas características tão presentes e marcantes nas obras que li do autor me lembram muito as descrições que Tolkien faz, em seu livro Sobre Histórias de Fadas, dos seres feéricos ou encantados e do mundo que habitam. Ele resgata criaturas folclóricas e antigas que nada tem a ver com as fadinhas fofas e travessas que vivem no imaginário popular, desde as fadas e elfos de Sonhos de uma Noite de Verão, até a birrenta, ciumenta e icônica Sininho de Peter Pan.
Pode-se dizer, portanto, que Coraline, como muitas outras obras do Gaiman, tem essa essência dos contos de fadas, mas insisto: um conto daqueles originais, como eram as versões dos Irmãos Grimm ou de Charles Perrault, e certamente não como as versões mais atuais adocicadas e suavizadas pela Disney (as histórias da Disney tem um espacinho todo especial em meu coração, mas convenhamos que o tom é completamente diferente). Ao meu ver toda a narrativa de Coraline tem essas características de contrapor o universo infantil e ingênuo da criança com uma aura mais sombria, com muitos toques de terror e de pesadelos (daqueles que você tenta acordar, mas não consegue).
Com isso em mente, vamos finalmente à história do livro. O autor começa nos apresentando a jovem Coraline Jones, uma garota que acaba de se mudar com os pais para um apartamento alugado numa velha casa, onde vivem outros moradores que são, no mínimo, excêntricos. A garota está de férias e vive entediada. Num dia de chuva, por uma sugestão de seu pai, a garota começa a explorar o casarão. Ela vai caminhando por toda a casa fazendo um inventário da quantidade de portas e janelas até chegar ao quarto de desenho, onde mora a mobília antiga herdada da avó e onde ela não deveria entrar. Com o auxílio da mãe, Coraline descobre uma porta secreta que dá para uma parede de tijolos, porém pela indicação de alguns ratos que invadem seus sonhos, ela volta sozinha à sala de desenho e descobre que a porta secreta leva para uma realidade paralela. Coraline, aproveitando de um momento em que se encontra sozinha, decide desobedecer e pega a chave que sua mãe disse para não pegar, entra no cômodo, que sua mãe disse para não entrar, e abre a porta, que sua mãe disse para não abrir.
Ao passar pela porta secreta e atravessar o corredor, Coraline se depara com o Outro Mundo, com os Outros Vizinhos e com os seus Outros Pais que, diferente do que ocorre no mundo real, tem tempo para brincar com ela, para cozinhar as coisas que ela gosta e para lhe presentear com as coisas que ela mais deseja. Coraline fica encantada com essa nova realidade onde tudo parece mais emocionante e onde as pessoas a chamam pelo nome correto. No entanto, algo chama a atenção da garota, todos nessa realidade tem olhos de botões pretos no rosto e ela descobre que, para viver nessa realidade mais atrativa, ela tem que deixar a Outra Mãe costurar esses botões no lugar de seus olhos.
Ao meu ver os botões podem ser interpretados de diversas maneiras: como máscaras que impedem Coraline de enxergar, pelo menos à princípio, a tristeza e a decadência dessas criaturas dominadas e manipuladas pela Outra Mãe ou como um símbolo de submissão, de ser transformado em um boneco ou um fantoche sem vontades próprias. O que, apesar de parecer algo horrível, traria a vantagem de isentar Coraline de encarar seus medos “olhos nos olhos”. Trata-se de uma história estranha, obscura e repleta de metáforas e verdades difíceis de encarar. É essencialmente uma história sobre ter coragem de enfrentar seus medos. Um tema clássico que aparece de forma constante nos contos de fada. 
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Meu personagem favorito é, de longe, o gato preto. Ele é misterioso e irônico, traz uns questionamentos existenciais à lá Alice no País das Maravilhas (numa fusão de Cheshire e Lagarta) e é graças a ele que temos os melhores diálogos de todo o livro. Ele e Coraline parecem ser os únicos que não tem uma versão criada pela Outra Mãe na realidade paralela, apesar de que, quando atravessa a porta secreta, o gato ganha a habilidade de falar ou Coraline a capacidade de entendê-lo (o fenômeno me lembra o que acontece com Jiji, o gato de O Serviço de Entregas da Kiki). Ele parece saber muito sobre os dois mundos, serve como um mentor para a garota e explica alguns conceitos importantes para a história, porém, mesmo ele, parece não saber o que a Outra Mãe é.
O fato de ninguém saber exatamente o que a Outra Mãe é faz parte da construção da personagem, afinal de contas: todos temos medo do desconhecido. A Outra Mãe é uma representação dos medos mais primitivos da humanidade, ela é temida por todos e seu poder parece ser quase onipotente na sua realidade. No entanto, o autor nos mostra que o importante é não desistir, ele diz que: “Coragem é fazer algo mesmo quando se está com medo” e Coraline não desiste, ela é corajosa, aventureira e uma exploradora nata. Mostrar que é normal sentir medo e que o importante é não se deixar levar por ele é, sem dúvidas, o principal tema de Coraline.
Essa questão do medo sempre foi um tema frequente e comum aos contos de fada que serviam, desde seu surgimento, como um reflexo fantasioso e uma abstração extravagante da realidade humana. Me parece muito propício que Gaiman tenha iniciado o livro com a frase do Sr. G.K.Chesterton: “Contos de fadas são a pura verdade: não porque nos contam que os dragões existem, mas porque nos contam que eles podem ser vencidos.” Acompanhada de citações e conceitos desses autores, cujos trabalhos eu admiro, finalizo essa pequena e singela apologia aos contos de fada e deixo a indicação, mais do que aprovada, da leitura de Coraline: seja para divertir, aterrorizar ou inspirar uma pontinha de coragem que às vezes nos falta.

Resenha escrita por Simone Souza . Siga no twitter: @sih_souz


Título: Coraline
Autor: Neil Gaiman
Editora: Intrínseca
Ano: 2020 | Gênero: Ação e Aventura

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