BEM-VINDO VIAJANTE! O QUE BUSCA NO MULTIVERSO?

A Insustentável Leveza do Ser

Sobre este romance, Italo Calvino escreveu: "O peso da vida, para Kundera, está em toda forma de opressão. O romance nos mostra como, na vida, tudo aquilo que escolhemos e apreciamos pela leveza acaba bem cedo se revelando de um peso insustentável. Apenas, talvez, a vivacidade e a mobilidade da inteligência escapam à condenação - as qualidades de que se compõe o romance e que pertencem a um universo que não é mais aquele do viver" (Seis propostas para o próximo milênio). O livro, de 1982, tem quatro protagonistas: Tereza e Tomas, Sabina e Franz. Por força de suas escolhas ou por interferência do acaso, cada um deles experimenta, à sua maneira, o peso insustentável que baliza a vida, esse permanente exercício de reconhecer a opressão e de tentar amenizá-la.

Título: A Insustentável Leveza do Ser
Título Original: Nesnesitelná lehkost bytí
Autor: Milan Kundera
Tradução: Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca
Editora: Companhia das Letras
Ano: 2017 / Páginas: 344


Fazendo do existencialismo o seu grande tema neste romance com ares de crônica, o escritor tcheco Milan Kundera nos leva por uma trama em que as vidas de quatro personagens entrelaçam-se tanto pelas suas próprias escolhas quanto pelo mais puro acaso com suas idas e vindas amorosas servindo de ponto de união e também de extrapolação para diversas metáforas filosóficas num estilo que me lembrou Dostoiévski e Goethe.
Escrito em 1982, A Insustentável Leveza do Ser se tornaria o trabalho mais popular de Kundera, na época exilado de seu país natal (após a ocupação Russa na Tchecoslováquia e por oposição ao totalitarismo soviético ao qual era um crítico ferrenho) e residindo na França. Este livro traz muito deste contexto histórico e político pela trama se passar justamente entre as cidades de Praga e Zurique, com eventos partindo do ano de 1968 e atravessando boa parte dos anos de Guerra Fria na Europa até o começo dos anos 1980.
Nele conhecemos Tomas um cirurgião e intelectual checo afeito a aventuras amorosas por quem a jovem Tereza apaixona-se e logo se casa, abandonando a vida de garçonete e passando a trabalhar como fotógrafa para uma revista. Também somos apresentados a Sabina, uma artista plástica devotada a arte, mas emocionalmente desconectada dos outros apesar de manter um relacionamento esporádico com Tomas e Franz, um professor e idealista político de Genebra. As idas e vindas destes quatro protagonistas ao longo de anos e em meio ao clima de tensão política daqueles dias dão corpo ao enredo, que na verdade é um mero pano de fundo, uma metáfora humana para o autor demonstrar entre outras coisas as ideias de como a vida é um rascunho de si mesma, jamais podendo ser vivida por inteiro, de que o eterno retorno é um mito impossível, e de que conceitos humanos tais como o amor, a liberdade e destino são frágeis.
Todos os personagens são um tanto egoístas, anseiam por coisas bem diferentes em suas vidas e tem visões de mundo paradoxais as quais se apegam de modo a criar para si mesmos um modelo de mundo compreensível e no qual possam avançar. Algumas vezes fica difícil entender como personalidades tão diferentes podem compartilhar tantos anos juntos ao passo que é fácil entender como o amor idealizado nutrido por alguns deles pode facilmente ser corroído pelas arestas do relacionamento nestas condições. Amar e sofrer são dois lados da questão ambivalente da leveza e do peso presente em toda obra. Contrastes que precisam um do outro para serem eles mesmos e magnificamente demonstrados na trama ainda que não concordemos ou aceitemos de pronto algumas atitudes e concessões dos personagens, mas que se pensarmos bem só reproduzem o caos e a ambiguidade da própria realidade e da vida cotidiana de todos nós em maior ou menor grau.
Recorrendo a figuras como Parmênides e Nietzsche, Kundera aborda sobretudo três grandes temas filosóficos enquanto narra a vida de seus personagens: a dualidade do peso e da leveza, a questão do eterno retorno e uma análise aprofundada da compaixão humana. Os pontos mais incômodos de ler foram as passagens relacionadas à invasão russa na Tchecoslováquia, demasiadamente arrastados em comparação às outras, mas que são de fundamental importância para o desenrolar da trama e desenvolvimentos dos personagens e cujos problemas dela oriundos infelizmente ainda encontram assustadores paralelos com o mundo atual.
Estruturalmente este é um romance não linear dividido em sete capítulos sendo cada um deles focado em um (ou em alguns casos mais de um) personagem. O autor reconta alguns fatos e eventos da vida deles diversas vezes, mas com perspectivas diferentes, adicionando novos elementos ou contextos a cenas já conhecidas. Isso não apenas exige um ótimo domínio da narrativa e dos personagens como também proporciona uma maior complexidade psicológica a todos eles. O narrador interrompe a trama para discutir alguns pormenores interessantes sobre os próprios personagens, relembrando-nos, leitores, de que aquelas não são pessoas reais, são personagens, apenas para logo em seguida retomar com a história, e ele faz isso de forma curiosamente bem natural! No Brasil os livros de Milan Kundera são publicados pela Companhia das Letras e este ganhou recentemente uma nova edição em capa-dura e um novo projeto gráfico pela editora.
Seja pelos seus personagens imperfeitamente humanos, críveis e profundamente complexos, seja pelo indissociável pano de fundo filosófico que permeia as vidas dos mesmos, ou pela escrita simples, mas contundente, A Insustentável Leveza do Ser merece ser lido e degustado em detalhes e com atenção. Entre os temas principais, além dos relacionamentos amorosos merecem destaque a arte, a política e a própria condição do ser e do existir humano, bem como as dualidades opostas e contrastantes que em certas ocasiões se tocam de forma insustentável, tal como o peso e a leveza já expressos poética e metaforicamente no título. Acima de tudo este é também um romance sobre desilusões. Seja na arte, na política, no amor, no trabalho e nas aspirações e filosofias de vida de cada um dos personagens e também de nós mesmos. Ninguém escapa do fardo insustentável que é ser a si próprio por mais leve e sublime que sejam os poucos momentos que passamos na Terra.