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A Metamorfose

Era uma vez um homem igual a todos que acorda transformado em inseto asqueroso. O ponto de partida desta fábula mais que sombria escrita por Franz Kafka (1883-1924) em 1912 tem a aparência daqueles pesadelos dos quais a gente morre de medo de nunca acordar. Entretanto, o estilo seco adotado pelo autor tcheco, próximo ao de um relatório, afasta o leitor do universo quase seguro do fantástico.
Em vez de enfatizar a anomalia, o modo como a escrita de Kafka normaliza o que parece extraordinário faz a estranheza do relato ser percebida como algo que pode acontecer a qualquer hora a qualquer um. Essa astúcia traz à tona a miséria trágica do cotidiano da vida em família, na qual os laços de dependência disfarçam o insuportável de cada um, em que a proximidade física mal esconde a incomunicabilidade.
O notório sentimento de mal-estar que apelidamos de kafkiano, contudo, não está livre de passagens de um humor absurdo, constrangedor. Por tudo isso, quando chega à última página, é difícil o leitor não se sentir feito uma barata tonta. - Cássio Starling Carlos Crítico da Folha
A Coleção Folha Grandes Nomes da Literatura traz ao público 28 ilustres autores da literatura mundial cujos clássicos marcaram gerações de leitores. Entre eles estão Machado de Assis, Fernando Pessoa, Eça de Queirós, Oscar Wilde, Virginia Woolf, Joseph Conrad, Tolstói e outros renomados autores.
Título: A Metamorfose
Título Original: Die Verwandlung
Autor: Franz Kafka
Tradutor: Marcelo Backes
Editora: Folha de S.Paulo
Coleção: Folha Grandes Nomes Da Literatura (vol.13)
Ano: 2016 / Páginas: 72


Imagine-se “acordar de sonhos intranquilos metamorfoseado num inseto monstruoso”. Esta é uma das premissas e um dos inícios mais memoráveis da literatura. Escrito em apenas vinte dias por Franz Kafka, A Metamorfose é provavelmente a sua obra mais famosa e também a mais estudada e referenciada ainda hoje sendo uma das poucas publicadas pelo autor ainda em vida, em 1915.
A Metamorfose é uma novela curta, protagonizada por Gregor Samsa, um jovem rapaz que trabalha incansavelmente como caixeiro viajante vendendo peças numa rotina extenuante para sustentar sua família composta por um pai aposentado, uma mãe doente e uma irmã ainda muito jovem. Gregor acorda cedo e trabalha muito, mas naquela fatídica manhã algo bizarro lhe acontece e ao despertar ele se dá conta de que não é mais um humano, tornou-se um inseto com uma dura carapaça, patinhas pegajosas e quelíceras asquerosas. Tudo então se desenvolve a partir disto. Gregor é confrontado com sua nova realidade, tenta enfrentá-la, tenta ser aceito, tenta se adequar, acostuma-se a ela, e sobretudo sofre. Diante de si são postos o senso do dever para com o trabalho e a família, a dificuldade de estabelecer um diálogo e uma convivência com eles, com os patrões e a sociedade bem como com a impossibilidade de retornar a forma humana e consequentemente a normalidade de sua rotina.
A novela é dividida em três partes, cada uma delas com um foco diferente da relação da família com Gregor, da relutância ao ódio passando por um curto período de aceitação. A tirania do pai é evidenciada em vários momentos ao passo que a mãe alimenta as vãs esperanças do filho voltar a ser um homem enquanto que a irmã se vê forçada a tomar para si a responsabilidade de cuidar do irmão e ajudar a manter a estabilidade do lar. Gregor passa a viver confinado no próprio quarto onde recebe alimento, mas deixa de ser tratado como filho e irmão, sobrevivendo das migalhas da cozinha e das migalhas do que outrora foram a sua vida familiar.
Li e recomendo a tradução de Marcelo Becks, encontrada nas edições da novela publicadas pela LP&M e Folha de S. Paulo, sobretudo pelas diversas notas do tradutor encontradas ao longo do texto que apontam características comuns de A Metamorfose com outros textos do autor e também evidencia representações simbólicas ao longo do texto e que são de fundamental importância para a plena compreensão da história e de suas particularidades.
A Metamorfose é uma novela curta, atemporal e comovente, repleta de simbolismos e surrealidade com um inegável componente trágico que nos choca mais pela forma como preferimos encarar certas situações do que pela bizarrice da própria transformação de Gregor. O texto simples, direto e imparcial de Kafka é rico em questionamentos sobre relações de trabalho abusivas, sobre as arestas incômodas e a priori invisíveis da convivência familiar, além de falar do comodismo, da solidão e da falta de empatia que por vezes nutrimos sem sequer nos darmos conta.
Ainda que Gregor não pudesse ser encarado exclusivamente como uma pessoa boa e que o autor tenha conseguido manipular minhas opiniões e sentimentos em relação a ele e aos outros personagens, foi impossível não me condoer e me apiedar com a sua situação durante a leitura. Me pergunto, ao final, quem de fato são os verdadeiros monstros ali. Não é difícil encontrar famílias como a dos Samsa e Kafka já demonstra que o próprio conceito de família merece um olhar mais crítico e menos condescendente, afinal apenas porque mudamos involuntariamente a nossa condição por algum infortúnio da natureza somos menos dignos e merecemos ser tratados com desprezo e sermos privados do convívio familiar? Não!