Neil Gaiman tem sido inspirado pela mitologia antiga na criação dos reinos fantásticos de sua ficção. Agora ele volta sua atenção para a fonte, apresentando uma versão bravura das grandes histórias do norte.Título: Mitologia Nórdica
Na mitologia nórdica, Gaiman permanece fiel aos mitos ao prever o maior panteão dos deuses nórdicos: Odin, o mais alto dos altos, sábios, ousados e astutos; Thor, filho de Odin, incrivelmente forte, mas não o mais sábio dos deuses; E Loki-filho de um irmão de sangue gigante para Odin e um malandro e insuperável manipulador.
Gaiman modela essas histórias primitivas em um arco romântico que começa com a gênese dos nove mundos lendários e mergulha nas façanhas de deidades, anões e gigantes. Uma vez, quando o martelo de Thor é roubado, Thor deve disfarçar-se como uma mulher - difícil com sua barba e enorme apetite - para roubá-lo de volta. Mais pungente é o conto em que o sangue de Kvasir - o mais sagaz dos deuses - se transforma em um hidromel que infunde bebedores com poesia. O trabalho culmina em Ragnarok, o crepúsculo dos deuses e o renascimento de um novo tempo e de pessoas.
Através da prosa hábil e espirituosa de Gaiman surgem esses deuses com suas naturezas ferozmente competitivas, sua susceptibilidade a ser enganados e enganar os outros e sua tendência a deixar a paixão inflamar suas ações, fazendo com que esses mitos há muito tempo respirem uma vida pungente novamente.
Título Original: Norse Mythology
Editora: Intrínseca
Autor: Neil Gaiman
Tradução: Edmundo Barreiros
Ano: 2017 / Páginas: 288
É notável a influência que os mitos nórdicos exercem nas histórias de Neil Gaiman, seja em aparições rápidas e pontuais, como em Sandman quando Odin, Thor e Loki surgem pessoalmente para requisitar a Chave do Inferno de Lúcifer em posse de Sonho ou como personagens cruciais para o desenvolvimento de suas tramas como o Sr. Wednesday em Deuses Americanos e a família das Hempstock em O Oceano no Fim do Caminho e até mesmo como fonte de inspiração direta em recriações fascinantes como no infanto juvenil Odd e os Gigantes de Gelo, lá estão presentes personagens, itens ou conceitos do ideário mitológico viking.
Assim como muitos de nós, Gaiman primeiramente teve contato com estas histórias através dos quadrinhos de Stan Lee e Jack Kirby para a Marvel e passou a se interessar cada vez mais por elas. Em Mitologia Nórdica, seu mais recente livro, ele busca recontar algumas destas histórias que tanto o fascinaram na infância e o influenciaram ao longo de toda a sua carreira,como roteirista e escritor, só que desta vez com o seu estilo e voz característicos, pois segundo ele, grande parte da diversão e do fascínio oriundo dos mitos está justamente em recontá-los.
Narradas como pequenos contos, as quinze histórias que compõem Mitologia Nórdica nos transportam aos nove reinos da Yggdrasil e nos conduzem através da ponte Bifrost aos desertos gelados de Asgard onde somos apresentados aos deuses Aesir e Vanir que compõem o panteão nórdico e também aos temíveis Gigantes de Gelo e Fogo, seus inimigos mortais. Destaca-se então o trio mais famoso de personagens: Loki com suas artimanhas sem fim e sua personalidade inconstante, Thor, o deus do trovão puro músculos, força e bravura e Odin, o Pai de Todos e o sábio Rei dos Deuses.
Ficaram entre as minhas histórias favoritas nesta leitura a dos contos “O Mestre Construtor” na qual em troca do sol, da lua e da mão da bela deusa Freya um misterioso construtor se habilita a construir uma muralha em torno da fortaleza de Odin, os deuses ficam receosos com a proposta, mas são convencidos por Loki a aceitá-la; “O Incomum Casamento de Freya” no qual para reaver seu martelo Mjolnir que havia sido roubado, Thor se disfarça de Freya e tem a mão prometida em casamento a um gigante; “O Hidromel da Poesia” onde é contado de onde vêm a inspiração dos poetas para as boas histórias, poesias e canções e igualmente também a origem das composições ruins e de gosto duvidoso; e “A Morte de Balder” onde nos é mostrada a faceta mais cruel e mesquinha de Loki quando por pura inveja ele trama o assassinato do belo e adorado deus Balder pelo seu próprio irmão Hod, fatos que desencadeariam futuramente o próprio Ragnarok.
É fascinante notar o quão parecidos conosco são os deuses nórdicos, eles são falíveis, dúbios, não há uma linha clara entre o bem e o mal e eles sofrem as consequências de suas escolhas e ações. O tom das histórias vai do humor leve ao drama mais trágico e todas são divertidas e instigantes de ler e para além dos personagens mais populares somos apresentados a uma verdadeira miríade de deuses, criaturas, itens mágicos e lugares fantásticos em suas páginas, tudo de forma vibrante e colorida!
O livro ainda possui uma Apresentação, uma descrição dos personagens principais e um Glossário, organizado pelo autor. As histórias seguem uma certa ordem cronológica, partindo do início do mundo com um mito de criação até o seu final em que são contados os eventos catastróficos do Ragnarok, mas elas podem ser lidas de forma independente e algumas vezes não mantém uma continuidade, apresentando certa incongruência, uma característica das narrativas mitológicas que por serem provenientes duma tradição oral antiga, cujas fontes há muito se perderam, nos chegam quase sempre de forma divergente e fragmentada. Aqui, Gaiman procurou se manter fiel às versões dessas histórias presentes no Edda em Prosa de Snorri Sturluson e na Edda Poética, dois compêndios de contos e poesias independentes datadas do século XIII e consideradas as mais antigas e importantes fontes para estudo da mitologia nórdica.
A edição impressa da Intrínseca com tradução de Edmundo Barreiros possui um belo projeto gráfico em capa dura com efeito emborrachado e um ótimo trabalho de tipografia e layout no miolo que proporcionam uma experiência tátil e de leitura confortáveis.
O texto de Neil Gaiman é fluido, direto e prazeroso de ler. Ele faz uma ótima construção de cenários e personalidades conforme exigido pelas histórias, há variações muito interessantes, sobretudo em relação a Loki, e o autor não peca em beleza usando uma dose certa de figuras de linguagem. Fica impossível não pensar em como seria uma recriação completa desta mitologia pela pena de Gaiman à exemplo do que ele fez em Sandman, mas aqui o foco é mesmo o de recontar com certa fidelidade versões dos mitos originais e embora o faça de forma muito satisfatória, o autor não vai além disto.
Mitologia Nórdica é uma ótima porta de entrada e vale como uma introdução acessível para conhecer e até se aprofundar um pouco mais nos mitos nórdicos podendo servir como fonte de consulta e referência. Para quem já é fã do autor ou já é um pouco familiarizado pelos mitos nórdicos de fontes indiretas, este livro faz uma apresentação concisa das histórias cuja relevância ainda permanecem vivas até hoje, propiciando uma redescoberta por completo de todo um conjunto de referências espalhados pela literatura, quadrinhos, games e cinema. Mas mais do que um livro introdutório ou um compilado de narrativas mitológicas ou das referências de Neil Gaiman, o grande mérito de Mitologia Nórdica é o de nos deixar fascinados com estas histórias, como se fosse a primeira vez que as ouvíssemos, ainda que elas já nos pareçam assim tão familiares.