BEM-VINDO VIAJANTE! O QUE BUSCA NO MULTIVERSO?

Esta Valsa é Minha

Escrito em um hospital psiquiátrico em apenas seis semanas, Esta valsa é minha é, ao mesmo tempo, um texto autobiográfico, um relato de época e um irrecusável convite para penetrar um universo feminino, alegre e sensível, mas também pleno de desilusões.
Num texto denso, Zelda reordena suas ideias através da personagem Alabama Knight: fala da infância à sombra de um pai austero, dos namoros e da adolescência no sul dos Estados Unidos, no período entreguerras, da vida com um artista na era do jazz, do sonho de se tornar uma bailarina profissional, das viagens à Europa, das festas e do álcool.
Imagens inusitadas e a visão de um vazio cortante pontuam a narrativa de Zelda, uma mulher fascinante que, a exemplo de eu alter ego Alabama Knight, jamais se conformou em ser apenas mulher de Francis. Enquanto ele trabalhava em Suave é a noite — que muitos críticos consideram sua obra-prima —, Zelda preparava sua própria versão da história.
Título: Esta Valsa é Minha
Título Original: Save Me The Waltz
Editora: Companhia das Letras
Autora: Zelda Fitsgerald
Tradução: Rosaura Eichenberg
Ano: 2014 / Número de Páginas: 304


Esta Valsa é Minha é o único romance de Zelda Fitzgerald, a grande musa inspiradora de muitas das personagens de seu mais bem conhecido marido F. Scott Fitzgerald. Trata-se dum livro autobiográfico, escrito por Zelda como uma forma de desabafo e uma tentativa de provar seu talento também como escritora, enquanto esteve internada em uma clínica psiquiátrica tratando de um quadro de transtorno bipolar. Zelda era dotada de uma personalidade forte e independente, nunca se contentando em viver à sombra do marido com quem partilhava um relacionamento conturbado envolto em escândalos e excessos. Ambos são tidos como ícones da Era do Jazz e como poucos viveram juntos e com toda a intensidade a loucura dos anos 1920 nos EUA.
Esta Valsa é Minha conta a história de Alabama Beggs, da infância com os pais Millie e Austin no interior do sul dos Estados Unidos, até a vida adulta quando ela conhece David Knight com quem se casa logo após o fim da Primeira Guerra Mundial e se muda para Nova York. David torna-se um pintor bem sucedido, enriquecendo rapidamente e resolve se mudar novamente com a esposa e sua filha para a Riviera francesa. Lá o relacionamento dá sinais de deterioração com casos de infidelidade de ambos os lados. Alabama, determinada a ser tão bem sucedida quanto o esposo, decide se tornar uma dançarina de balé e passa a treinar com afinco e de forma obsessiva, eventualmente alcançando o sucesso ao fazer sua estréia solo apresentando uma coreografia para a ópera Fausto.
Embora extremamente bem sucedidos em suas carreiras artísticas, Alabama e David são miseráveis e ao longo do romance entendemos o porquê. Alabama perpassa um longo caminho da infância às festas abastadas e os excessos bancados pelo sucesso e pelos contatos na elite cultural norte-americana, do conturbado nascimento da sua primeira e única filha, da posterior estagnação do relacionamento com David e da inquietante e angustiante falta de propósito, até o reencontro com a vida e consigo mesma por meio da Arte, seguido do reconhecimento pelo esforço e a queda pela própria obsessão. Vemos uma personagem de brilho e personalidade únicos, que entre tantas idas e vindas da vida se mostra tanto disposta a esquecer tudo, quanto a também fazer tudo de novo se preciso for.
Como um romance autobiográfico é impossível não se questionar onde termina Alabama e onde começa Zelda e o quanto a autora pôs de si mesma na personagem. Nuances do relacionamento conflituoso de Zelda e Scott também perpassam o texto a todo o instante, seja nos casos de infidelidade de ambos, nas bebedeiras e festas opulentas das quais eram frequentadores assíduos, no transtorno psicológico e as frequentes internações de Zelda, além é claro das suas investidas em diversos campos da arte, especialmente o balé.
O livro é dividido em quatro partes e doze capítulos nos quais a prosa de Zelda se mostra no mínimo desconcertante. Em dados momentos a impressão que tive foi a de uma total falta de preocupação em situar o leitor, páginas voam e perde-se a noção de tempo e espaço como num torpor alcoólico. As metáforas e a linguagem figurada dificultam ainda mais a percepção da realidade narrada, mas acabam por conferir ao texto de Zelda uma beleza poética dotada dum vigor próprio e dum lirismo tão singular quanto o da sua protagonista. Os diálogos são repletos de comentários ácidos acerca das condições dos personagens e evidenciam a forma irônica como enxergam o mundo e a si mesmos e o seu total desprendimento em relação ao status quo. "— Gosto de pagar pelo que faço… desse modo, sinto-me em dia com o mundo." vemos exclamar em dado momento uma ainda jovem Alabama e logo mais tarde ela de fato paga por todas as suas escolhas, enfrentando sérias dificuldades, mas sem demonstrar qualquer arrependimento das opções que ela mesma fez ou baixar a cabeça para os caprichos do destino.
Suave é a Noite, considerado por F. Scott Fitzgerald como a sua grande obra-prima não me agradou tanto em parte por não conseguir transmitir a mim de forma mais convincente a carga dramática prometida na sinopse. Tanto ele quanto Esta Valsa é Minha bebem da mesma fonte, o relacionamento marcado por altos e baixos de seus autores, mas é Zelda quem captura de forma mais contundente as arestas que ora os faziam divergir e ora pareciam aproximá-los ainda mais. Em Esta Valsa é Minha talvez falte o polimento e a concisão criteriosa da escrita de Scott, mas o que o torna único e especial é o fato dele conter toda a inquietação espirituosa e indomável de Zelda. Num contexto social similar, a Alabama de Zelda Fitzgerald me lembrou Esther Greenwood, protagonista de A Redoma de Vidro de Sylvia Plath. Ambas são mulheres de vanguarda em busca dum lugar num mundo que crescia e mudava rapidamente mas que também continuava incapaz de lidar com almas como as delas cujas maiores ambições eram a independência, o reconhecimento e a própria liberdade.
Esta Valsa é Minha falha em alguns aspectos, mas acerta com êxito em tantos outros e merece assim ser lido como mais do que uma mera curiosidade literária, sobretudo por quem já conhece Suave é a Noite e outras obras de F. Scott Fitzgerald. Obviamente, pelo seu tom autobiográfico, é o tipo de livro que será melhor apreciado por leitores já minimamente familiarizados com a biografia do talentoso casal Fitzgerald que tanto pelos excessos quanto pela tragédia marcariam para sempre suas vidas, seus nomes e seu amor na História e na Literatura. Mas isso não impede que se extraia mais dele. Em suas páginas encontramos a percepção feminina de toda uma época, com seus anseios, sonhos e expectativas postos lado a lado com as suas mais íntimas desilusões e frustrações. Seu drama é real e sua protagonista, complexa, falível e intensa é dotada de vida própria. Através dela a experiência cotidiana da autora ganha contornos de arte significativa, constituindo assim um retrato não apenas de uma época, mas também de toda uma vida e isso não deve nunca ser desprezado.