BEM-VINDO VIAJANTE! O QUE BUSCA NO MULTIVERSO?

Fahrenheit 451

Queimar livros foi um recurso usado em tempos sombrios, como o da Santa Inquisição e o do nazismo, para eliminar ideias resistentes à crença sanitária no pensamento único. No mundo futuro concebido por Ray Bradbury (1920-2012) em Fahrenheit 451, ler tornou-se um ato subversivo e os que insistem em ter pequenas bibliotecas às escondidas podem virar cinzas junto com seus volumes. O devaneio, a poesia, a filosofia e a ficção foram extintos porque não se admite perder tempo com algo que, em vez de puro entretenimento, ofereça inquietação e angústia. Como toda ficção científica, essa distopia publicada em 1953 emite os sinais negativos da época em que foi escrita. Mas, se a redução das ideias ao binarismo, o desprezo ao intelectual, o fluxo de informações num nível inassimilável e a suspeita de qualquer sinal de melancolia já eram considerados fatores de risco em meados do século passado, nossa civilização anestésica fez do futurismo de Bradbury um gênero bem mais próximo do realismo. Cássio Starling Carlos Crítico da Folha
Título: Fahrenheit 451
Título Original: Fahrenheit 451
Coleção: Folha Grandes Nomes Da Literatura (vol.23)
Editora: Folha de S.Paulo
Autor: Ray Bradbury
Tradução: Cid Knipel
Ano: 2016 / Páginas: 168


Ao lado de Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley e 1984 de George Orwell, Fahrenheit 451 de Ray Bradbury integra um clássico trio de romances distópicos, obras que narram versões futuristas da sociedade que de alguma maneira deram muito erradas, caracterizadas pela extrema opressão, privação e desespero com o objetivo de criticar tendências da sociedade atual, ou parodiar as utopias, alertando para os seus perigos.
A sociedade descrita em Fahrenheit 451 é comandada por um governo totalitário num futuro próximo e numa América em guerra nuclear com outros países enquanto a maioria de sua população vive num estado de torpor e alienação hedonista reforçados pela tecnologia e pela mídia e pela incapacidade de pensar de maneira mais aprofundada e crítica sobre sua própria condição. Ao contrário das outras distopias, aqui o totalitarismo é mais sutil e se encontra enraizado na sociedade através do poderio midiático e do consumismo e não tanto nos regimes governamentais.
As pessoas comuns têm seus sentidos bombardeados o tempo todo com os mais diversos estímulos, elas tapam os ouvidos com conchas que tagarelam o tempo todo, dirigem carros a velocidades tão altas que não notam sequer os contornos da cidade, a paisagem e o céu, assistem a várias telas simultâneas em suas salas com programas histéricos, coloridos e assim se distraem e se desconectam da própria realidade. Não há tempo e nem estímulo para pensar, não há espaço para a dúvida e o questionamento crítico, tudo lhes é entregue digerido e simplificado ao máximo sobretudo pela mídia. Apenas lhes é exigido que saibam ler manuais básicos para operar aparelhos. Ler para qualquer outro fim é um crime e a maioria das pessoas vê isso como uma tarefa desagradável, cansativa e infrutífera, uma subversão abominável. Aqueles que se são descobertos lendo ou portando um livro são imediatamente denunciados aos bombeiros.
Os bombeiros aqui não mais precisam apagar incêndios pois através de uma avançada tecnologia todas casas são dotadas de um revestimento plástico antichamas. Como os livros são mal vistos socialmente e proibidos pelo governo, ironicamente cabe agora aos bombeiros atear fogo aos mesmos e as casas que os abrigam e, caso necessário, também aos seus proprietários, vistos como verdadeiros criminosos e um perigo para sociedade. O protagonista, Guy Montag, é um desses bombeiros, assim como foram anteriormente seu pai e seu avô, e sua rotina é relativamente simples, habituado ao trabalho, que cumpre com prazer e sem exitar, ele retorna ao fim do dia para casa onde vive com Millie, sua esposa, no que julga ser uma vida plenamente feliz e satisfatória.
Isso começa a mudar quando ele conhece Clarisse McClellan, sua nova vizinha, uma jovem que demonstra uma curiosidade fora do comum sobre o mundo, a natureza e o próprio Montag. As conversas entre ambos passam a ser frequentes e a forma estimulante como Clarisse o indaga sobre tudo faz com que Montag desperte e se dê conta da própria alienação, do vazio e da infelicidade em que vive. O amor a esposa e ao trabalho deixam de ser certezas absolutas e ele passa a sentir uma espécie de aversão pelo próprio estilo de vida. Isso o leva a desenvolver uma curiosidade cada vez maior sobre os livros que queima, afinal o que há neles que os fazem ser tão perigosos? Assim, acompanhamos Montag pondo em cheque todas as suas certezas e conduzindo uma empreitada tanto em busca de autoconhecimento quanto de uma maior compreensão crítica da sociedade na qual está inserido e obviamente ele será ferozmente perseguido por isto.
Com um texto fluido, numa narrativa eletrizante em terceira pessoa, o livro se divide em três partes e é permeado de grandes momentos e passagens, das mais perturbadoras como na cena em que uma mulher prefere atear fogo nos próprios livros, na própria casa e ao próprio corpo a se entregar aos bombeiros até as mais metafóricas como a que Beatty, o chefe dos bombeiros e de Montag duela com o protagonista citando trechos de diversas obras literárias. A edição da Folha de S. Paulo usa a mesma tradução de Cid Knipel para o selo Biblioteca Azul da Editora Globo e traz um Posfácio e o Coda, ambos escritos pelo próprio Bradbury onde o autor detalha o processo de gênese desta obra e reforça a sua crítica ao entretenimento barato oferecido pela mídia, sobretudo a TV, mas que se aplica igualmente nos dias de hoje também à internet.
Se há um ponto em que discordo do autor é no Coda, lá ele nos conta as motivações iniciais que o inspiraram a escrever essa obra e menciona a questão das minorias. Na trama de Fahrenheit 451 é revelado que em dado momento da História os livros começaram a sofrer tantas interferências editoriais para atender as demandas das inúmeras minorias que aos poucos foram se tornando insossos e irrelevantes, pasteurizados a tal modo que se tornaram incapazes de manter acesa a chama do incômodo tão pertinente na literatura apenas para se adequar a um politicamente correto que nada mais é do que uma censura velada. Eis o ponto. A luta das minorias e sua busca por espaço e melhor representatividade é justa e necessária, e discordo que isso coíba qualquer autor que seja a censurar suas pretensões artísticas para atender valores ou anseios com os quais ele não concorda ou simplesmente não quer abordar, muito menos o força a revisar o que já publicou limando o seu trabalho e a sua arte.
Em Fahrenheit 451 é dito que há muitas formas de se queimar livros, e em minha opinião silenciar as minorias também é uma delas. Felizmente, ao contrário dos rumos traçados no universo distópico de Bradbury, temos visto que aos poucos a inclusão e o atendimento de demandas sociais reprimidas não apenas estimula um debate mais amplo como também enriquece a experiência do todo dada a maior diversificação e a abrangência dos conteúdos agora oferecidos.
Fahrenheit 451 foi umas das melhores e mais gratificantes leituras que fiz nos últimos tempos. Sua história aparentemente simples num romance tão curto traz consigo tantas reflexões e metáforas que seria impossível enumerar neste espaço. Sua crítica ainda é tão atual, relevante e pertinente quanto quando fora escrito em 1953 e percorrer suas páginas é uma jornada estimulante, inquietante e prazerosa, como todos os livros deveriam ser.
Talvez soe um pouco sádico o que vou dizer, mas este livro sobre livros sendo queimados é tudo o que qualquer leitor precisa ler. Muito mais do que reforçar nosso encanto por estes objetos fascinantes, sabiamente um importante instrumento da perpetuação do saber e da cultura humana, Fahrenheit 451 nos mostra que os livros são armas perigosas contra a ignorância, a cegueira e a passividade, mas que de nada adiantam se estiverem fechados enquanto nos encerramos numa bolha de entretenimento vazio. Se ler é um ato subversivo, sejamos todos subversivos, leíamos mais, leíamos Fahrenheit 451!
PS: Nenhum livro foi maltratado, ferido ou queimado durante a produção desta resenha, mas não podemos afirmar o mesmo sobre o autor da mesma.