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No Sufoco

Victor Mancini concebeu um golpe complexo para pagar as contas na casa de repouso da mãe: vá a um restaurante grã-fino, finja que se engasga comendo e deixe uma pessoa “salvá-lo”; ela vai sentir-se responsável por você, até financeiramente, pelo resto da vida. Multiplique isso umas cem vezes que os cheques vão chegar pelo correio em fluxo constante. Victor também trabalha num parque temático com um bando de figuras medíocres, ronda grupos de viciados em sexo para curtir as viciadas e visita a mãe convalescente, cujo Alzheimer esconde um segredo fantástico sobre sua concepção.

Título: No Sufoco
Título Original: Choke
Autor: Chuck Palahniuk
Tradução: Érico Assis
Editora: LeYa
Ano: 2015 / Páginas: 272


Elvira Vigna, escritora recentemente falecida disse em entrevista que é também papel da literatura nos incomodar e eu tendo a concordar com ela, livros que nos deixam inquietos conosco e com o mundo e que nos despertam reações geralmente são os melhores. Um dos autores que mais me causam essas sensações é o norte-americano Chuck Palahniuk. Chuck é mundialmente conhecido por suas obras de ficção transgressoras e subversivas, aclamado por público e crítica sobretudo por seu romance de estreia, Clube da Luta, de 1996, com o qual ganhou ainda mais popularidade devido a bem sucedida adaptação cinematográfica estrelada por Brad Pitt em 1999. No Sufoco é seu quarto romance, publicado originalmente em 2001 e é tido por alguns como uma versão de Clube da Luta, mas agora sobre sexólatras, ou seja, pessoas viciadas em sexo.
Neste livro acompanhamos Victor Mancini e seu amigo Denny durante alguns meses de suas vidas intercalados com muitos flashbacks da infância de Victor que também é o narrador. Sua mãe foi considerada incapaz de criá-lo e ele passou a maior parte da infância em diversos lares adotivos. Sua mãe sempre o sequestrava de volta deles e de seus pais adotivos, mas logo Victor era recapturado pela polícia e entregue a agência estatal de bem-estar infantil e novamente posto num lar adotivo e assim sucessivamente.
No presente, Victor é um homem de vinte e poucos anos que abandonou a faculdade de medicina a fim de encontrar trabalho para sustentar sua mãe que agora está em um lar de idosos convalescendo pelo Alzheimer em estado avançado. Por não conseguir arcar com os custos médicos crescentes de sua mãe, Victor concebe um engenhoso plano para extorquir dinheiro de pessoas bem intencionadas. Várias vezes por noite, ele vai a restaurantes e propositadamente engasga-se durante sua refeição, atraindo um "bom samaritano" para salvá-lo da asfixia através da manobra de Heimlich, aquela mesma dos primeiros socorros. Victor mantém uma lista detalhada de todos os seus salvadores e frequentemente envia a eles cartas onde diz ter dívidas que é incapaz de pagar e conta sobre como é pobre, doente e miserável. Essas pessoas então sentem tanta pena dele que passam a lhe enviar dinheiro constantemente. O montante é quase todo gasto com a clínica de sua mãe. Durante o dia, Victor trabalha em um museu de reencenação dos tempos coloniais, onde a maioria dos funcionários são viciados ou, no caso do seu amigo Denny, um companheiro se recuperando do vício em sexo. Victor conheceu Denny em um grupo de apoio para sexólatras e mais tarde se candidataram para o mesmo trabalho. Denny posteriormente é demitido do museu, passa a morar com Victor e começa a coletar pedras de forma obsessiva pela cidade.
Enquanto crescia, a mãe de Victor ensinou-lhe inúmeras teorias da conspiração e fatos médicos obscuros que tanto o confundiam quanto o assustavam. Seus movimentos constantes de um lar adotivo para outro somados a personalidade neurótica da mãe, tornaram Victor incapaz de formar relações duradouras e estáveis ​​com as mulheres. Como resultado, hoje ele é um viciado em sexo, mantendo apenas relações superficiais em troca de prazer e ainda usando as reuniões de viciados em sexo para encontrar muitas de suas parceiras sexuais. Com a morte eminente de sua mãe e sem entender direito o próprio passado, Victor apressa-se para fazê-la lhe contar toda a verdade sobre sua origem.
A prosa de Chuck é rápida e não linear e ele insere elementos crípticos, na forma de frases curtas repetidas ao longo de seu texto, quase um código que te faz lembrar exatamente do primeiro contexto em que ele o usou. Genial não é a palavra certa, mas é a primeira que me ocorre. Vide: Clube da Luta. Vide: o que Jesus NÂO faria. Vide: Os órgãos antropomorfizados do Joe. Como é comum em suas obras, há aqui também inserções de diversas informações muito específicas com as quais você jamais teria contato de outra forma, algo que passaria como cultura inútil em qualquer outro contexto, mas não aqui, aqui tudo é relevante para o que ele se propõe a contar e construir, coisas como: como é feita a separação dos pacientes em clínicas médicas? Quais as melhores cabines de banheiros de aviões para transar? Quais os passos comumente trabalhados em grupos de apoio para viciados? Como desengasgar uma pessoa com uma micro cirurgia de emergência?
Os capítulos são curtos e alternam núcleos de personagens, situações e cronologia conforme as coisas acontecem, é preciso juntar as diversas peças do quebra-cabeças espalhado para compor o todo idealizado pelo autor. Não há eufemismos para sexo e nem romantização em sua linguagem que se vale bastante da crueza de gírias e palavras de baixíssimo calão, o que não poderia ser de outra forma. Mas não espere por um livro hot, ou uma jornada excitante repleta de erotismo, a compulsão sexual do protagonista é tratada o tempo todo como uma doença e percebemos o quanto ela afeta o seu cotidiano e as suas relações pessoais, além é claro da sua própria mente nessa busca descontrolada e vazia por prazer.
O livro perde um pouco o ritmo em seu meio, onde a alternância de cenas e falta de um rumo mais claro no enredo tornam a leitura cansativa, porém mais próximo do final, quando há uma inversão daquilo que Victor descobre e uma reviravolta com uma outra personagem, ele engrena novamente para um desfecho perturbador e satisfatório e à semelhança de Clube da Luta, novamente com personagens marginalizados pela sociedade levadas aos extremos de suas paranoias em situações de agressividade autodestrutiva e que já fugiram totalmente de qualquer controle.
No Sufoco me impactou tanto quanto Clube da Luta, não é exagero compará-los visto que ambos carregam o mesmo tom de crítica social e têm uma estrutura narrativa e conceitual bem semelhante. Se em Clube da Luta a forma de escape encontrada para a pressão do sistema sobre o indivíduo alienado dum propósito maior que não seja o consumismo reside nas lutas em clubes secretos onde a violência e a adrenalina podem ser extravasadas indiscriminadamente, em No Sufoco a válvula de escape está no prazer hedonista dos vícios e nas fantasias oriundas dele, o sexo é o principal, mas isso também se manifesta nas simulações de engasgo de Victor e no colecionismo de pedras de Denny.
No Sufoco é o tipo certo de livro errado para quem quer sair completamente da sua zona de conforto em relação à literatura seja ela qual for. Chuck não tem medo de se sujar e ir fundo na perversão e transgressão daquilo que de mais vil somos capazes de conceber em nosso íntimo humano e imperfeito. No Sufoco é um livro de extremos, que atiça a nossa curiosidade para a bizarrice do real enquanto nos choca com seu humor cínico e enoja com sua completa amoralidade. Recomendo para quem tem estômago, pois vai ser fácil se engasgar com essa leitura e ao contrário do protagonista, talvez o único bom samaritano que você vai encontrar seja o próprio Chuck, que prefacia o livro com um alerta tentador: “Se você vai ler este livro, não se incomode. Depois de algumas páginas, você não vai querer estar aqui. Então esqueça. Vá embora, Saia enquanto está inteiro. Salve-se.” Eu prefiro me condenar.