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História da sua vida e outros contos

Um dos autores de mais destaque no cenário da ficção científica, Ted Chiang pode ser descrito como um escritor pouco prolífico: tem apenas quinze trabalhos publicados, entre contos e novelas curtas. A pequena produção contrasta com sua expressiva quantidade de premiações: os oito textos reunidos em História da sua vida e outros contos ganharam no total nove importantes prêmios, dentre eles Nebula, Hugo, Locus, Sturgeon, Sidewise e Seiun.
Publicadas originalmente em volumes diversos, as narrativas de Ted Chiang estão pela primeira vez reunidas em uma coletânea. Entre as histórias dotadas de rigor científico, humanidade e lirismo estão “A torre da Babilônia”, na qual um minerador sobe a famosa torre com a missão de escavar a abóbada celeste; “Divisão por zero”, uma reflexão precisa e devastadora sobre o fim da esperança e do amor, e “História da sua vida”, na qual uma linguista aprende um idioma alienígena que modifica sua visão de mundo.
Com uma prosa límpida e ideias às vezes desconcertantes, Chiang comprova seu inegável talento para a boa ficção científica: a capacidade de contar uma história humana, extremamente bem escrita, na qual a ciência funciona como expressão dos questionamentos mais profundos enfrentados pelos personagens. Um livro repleto de ideias originais e passagens inesquecíveis.
Título: História da sua vida e outros contos
Título Original: Stories of Your Life and Others
Editora: Intrínseca
Autor: Ted Chiang
Tradução: Edmundo Barreiros
Ano: 2016 / Número de páginas: 368



Num daqueles felizes acasos da vida recebi uma recomendação deste livro e autor que até então nunca tinha ouvido falar, mas cuja sinopse prometia tanto que não pude resistir. História da sua vida e outros contos é uma antologia formada por oito contos de Ted Chiang publicados em várias revistas de ficção científica, entre os anos 1990 e 2002. O autor de nome chinês, mas de origem norte-americana é tido como um dos grandes nomes da literatura de ficção científica da atualidade, tendo recebido vários dos prêmios mais notáveis deste gênero.
A maioria dos contos de Chiang conta com várias páginas de desenvolvimento, nas quais o autor aprofunda-se em diversos conceitos técnicos necessários à sua compreensão, num estilo que talvez possa ser caracterizado mais como didático do que literário (o hard sci-fi), embora isto em nada tire do brilhantismo,d o impacto e da originalidade de nenhum deles, tampouco das suas premissas, todas no mínimo muito interessantes, originais e até ousadas. Vou destacar alguns dos contos que mais apreciei durante a leitura:
“Entenda” é narrado em primeira pessoa e sob a perspectiva do protagonista, Leon Greco, possui um ritmo frenético e um ótimo clímax. Leon sofreu um afogamento grave, esteve à beira da morte, mas sobreviveu, ficando com severas sequelas desta experiência. Ele então é submetido a uma técnica experimental de regeneração cerebral, recupera-se espantosamente bem e passa a desenvolver uma inteligência sobre humana após o tratamento. Tal fato não passa incólume às agências secretas do governo e o protagonista começa a ser perseguido, e então, usando sua super inteligência, ele tenta escapar e sobreviver enquanto prossegue se aperfeiçoando exponencialmente. O conto extrapola nossas noções sobre pensamento e inteligência, nos fazendo imaginar do que seríamos capazes se pudéssemos nos aprimorar tão rapidamente a um nível tão elevado.
O conto que dá nome à coletânea é também um dos melhores nela, do começo ao fim foi um dos que mais me intrigaram e prenderam. “História da sua vida” foi adaptado para o cinema, servindo de base para o roteiro do premiado filme “A Chegada”, de 2016. Mistura tocante de drama e sci-fi, nele, Louise Banks, uma doutora em linguística, é convidada para integrar uma equipe de pesquisadores com o objetivo de estabelecer um diálogo com seres extraterrestres que recém chegaram à Terra, simultânea e pacificamente em diversas partes do globo. Com o tempo e fazendo uso de diversas técnicas de comunicação e escrita, a doutora vai decifrando e compreendendo o idioma extraterrestre, passando também a se expressar nele. Como um efeito colateral ela passa a desenvolver também uma forma completamente diferente e instintiva de enxergar a própria realidade, para além das barreiras do tempo presente. O conto ganha ares mais humanos tanto por ser narrado em primeira pessoa quanto por ser um relato franco direcionado à filha da doutora que na época sequer havia sido concebida. Também destaco o uso da Linguística em sua elaboração, seja como ferramenta de conexão com o diferente, seja por sua característica definidora daquilo que somos por meio do que conseguimos expressar do mundo que nos cerca.
Em “O Inferno é a ausência de Deus”, o autor traz como figuras centrais os anjos, seres extremamente poderosos que a cada aparição provocam em igual medida catástrofes e milagres. No conto, o protagonista perde a sua amada esposa durante uma das aparições dos anjos, vendo-a ascender ao Céu. Inconformado com a perda e ciente de que não terá lugar ao lado dela quando morrer, ele busca ao longo do conto reencontrar a própria fé agarrando-se à esperança de um dia poder revê-la. O conto aborda aspectos muito interessantes sobre a religiosidade e de como a experiência de fé pode ser totalmente diferente para cada pessoa, mostrando assim que bênção e maldição, Céu e Inferno estão muito mais próximos uns dos outros do que imaginamos. O desfecho é inacreditável!
“Gostando do que vê: um documentário” é apresentado na forma de diversos relatos numa polifonia que me remeteu instantaneamente às discussões polêmicas que acompanhamos diariamente em nossas redes sociais. O grande tema do conto é a percepção e a exploração da beleza física. Partindo da premissa de que os sentidos humanos podem ser manipulados ou suprimidos através da tecnologia, o autor explora as consequências e os dilemas sobre o uso obrigatório de uma ferramenta para inibir a percepção da beleza e por tabela a exclusão social das pessoas tipicamente vistas como menos bonitas. O conto esgota praticamente todos os pontos de vista da questão polêmica, fornecendo argumentos para que o leitor forme sua própria opinião ao final.
Destaco ainda “Divisão por Zero”, no qual uma pesquisadora de Matemática descobre uma contradição na perfeição das suas equações, o que quebra toda a estrutura lógica de seu pensamento com sérias consequências para sua vida pessoal. Dos outros contos, apenas não curti tanto "Setenta e duas letras" que com seus autômatos de barro soa como algo retro futurista, mas que pela carga política e econômica malthusiana sustentada por um conceitual de teorias científicas que hoje já não fazem mais qualquer sentido, deixou a desejar em relação aos outros no quesito imersão.Ao final do livro há uma série de Notas sobre cada um dos contos com curiosidades sobre a gênese, suas fontes de inspiração, explicações sobre as licenças poéticas usadas e comentários diversos do autor.
Esta antologia permanece como sendo a única obra de Chiang traduzida e publicada no Brasil. Embora a sua produção não seja tão vasta, fica o desejo por mais. Ted Chiang faz da Ciência e do saber humano a matéria prima principal dos seus contos. Lê-lo é como aprender algo novo pela primeira vez e ficar fascinado pelo conhecimento, algo que particularmente valorizo muito e que nem sempre percebo no gênero da ficção científica. Mas longe de ser uma enciclopédia de assuntos variados, todo este saber serve de ponto de partida e de apoio para reflexões mais profundas sobre as angústias, visões de mundo e dilemas de seus personagens e é claro de nós mesmos.