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Mona Lisa Overdrive (Trilogia do Sprawl #3)

Mona Lisa Overdrive, de William Gibson, é o terceiro e último volume da Trilogia do Sprawl, uma das mais cultuadas da ficção científica. A obra dá sequência aos acontecimentos de Neuromancer e Count Zero e mantém o mesmo estilo cyberpunk. Porém, agora a utilização do ciberespaço evoluiu de tal modo que as inteligências artificiais atingiram a autoconsciência. Libertas do controle humano, elas povoam a Matrix e assombram os usuários.
Em uma história com altas doses de ação e aventura , o romance leva ao leitor novos personagens, como: Mona, uma jovem prostituta a quem é oferecida uma grande oportunidade, Angie, uma popstar do stim, que possui a habilidade de conectar-se ao ciberespaço sem auxílio de nenhum dispositivo e Kumiko, uma jovem que teve de vir do Japão para se safar de uma guerra entre gangues e encontra apoio em uma experiente samurai das ruas. Essa história conclui os eventos iniciados em Neuromancer, fechando assim a trilogia ícone do cyberpunk
Título: Mona Lisa Overdrive
Autor: William Gibson
Série: Trilogia do Sprawl #3
Editora: Aleph
Tradutor: Carlos Irineu
Ano de Publicação: 2017 / Páginas: 320


Mona Lisa Overdrive encerra a Trilogia do Sprawl de William Gibson iniciada com o revolucionário Neuromancer e expandida em Count Zero. Publicado originalmente em 1988, a conclusão da cultuada saga precursora do subgênero de cyberpunk, recebeu diversas nomeações entre os principais prêmio literários de ficção científica.
A realidade de Mona Lisa Overdrive se mostra ainda mais decadente, com enormes parques industriais abandonados, máfia e zaibatsus transnacionais monopolizando o poder político e econômico, a poluição e a contaminação por agentes radioativos e biológicos convivendo lado-a-lado com toda a sorte de miséria urbana. O simstim, a matrix e as drogas sintéticas cada vez mais elaboradas (algumas assinadas por designers) são as válvulas de escape mais requisitadas pela população marginalizada. As Inteligências Artificiais, agora plenamente autoconscientes e independentes, povoam todo o ciberespaço assombrando e interagindo com os usuários da matrix, a grande alucinação coletiva por meio do qual um cowboy/hacker pode visualizar e interagir em tempo real com os mais diversos fluxos e bancos de dados informáticos.
O enredo de Mona Lisa Overdrive se passa cerca de oito anos depois de Count Zero e, assim como acontece no livro anterior, se desenvolve de forma intercalada em capítulos curtos até que os vários plots, a priori, independentes se mesclam num único clímax simultâneo. Num dos plots acompanhamos Kumiko, uma garotinha asiática, filha dum chefão da Yakuza que por questões de segurança, acaba de ser enviada para Londres onde deve ficar até que uma guerra entre as gangues dos líderes da máfia japonesa se resolva. Na cidade londrina ela fica praticamente em cativeiro aos cuidados de capangas dum chefe da máfia local, entre eles, Sally Shears uma mulher misteriosa por quem ela sente uma certa afeição que logo se transforma em amizade.
A segunda história acompanha Slick Henry, uma espécie de artista solitário que passa o dia criando esculturas robóticas e que vive numa vastidão deserta e envenenada por produtos tóxicos onde antes existiam fábricas e um parque industrial. Como consequência de repetidas punições com uma técnica de lavagem cerebral pelos furtos que cometeu, Slick sofre de constantes episódios de perda de memória, não conseguindo se lembrar do que fez enquanto sua mente esteve inconsciente. Como pagamento por ter tido a vida salva por um criminoso, ele é designado para cuidar de um homem em estado comatoso, ligado a um dispositivo cibernético.
Angie Mitchell, protagonista de Count Zero, é hoje uma superestrela do simstim. Sua capacidade de interfacear com a matrix diretamente, sem decks, devido aos implantes que possui na cabeça está prejudicada devido ao uso frequente de drogas sintéticas sofisticadas fornecidas por sua própria empresa de produção, a Sense/Net. Angie se encontra sozinha, num luxuoso hotel à beira mar sofrendo terríveis crises de abstinência. Bobby Newmark, o Count Zero, que fora seu namorado está desaparecido. E finalmente, Mona, a personagem que dá nome ao livro é uma jovem prostituta vivendo em meio à miséria duma cidade pequena. Ela vive com uma espécie de cafetão, se prostitui quase que exclusivamente para manter o vício em wix e acaba sendo contratada por uma fortuna por um agente misterioso interessado em sua notável semelhança física com Angie… Molly Millions, Case, o Finlandês e Lady 3Jane de Neuromancer também retornam, ora ativamente e ora apenas como citações.
Assim como em Count Zero, a profusão de personagens coadjuvantes pouco relevantes em torno dos protagonistas e a demora para as tramas paralelas se entrelaçarem acabou por tornar a leitura um pouco confusa em alguns momentos. Mas em Mona Lisa o ritmo frenético de ação em torno de linhas narrativas mais explícitas me manteve grudado à trama e ansioso pelas próximas páginas. O uso de alguns personagens já conhecidos, além duma melhor identificação, possibilitou também que o autor focasse mais no desenvolvimento do que na apresentação de novos e inéditos contextos para cada um deles. A não ser com Molly, mas compreendo que era preciso atualizar a protagonista mais cativante da trilogia nestes quinze anos decorridos entre a primeira aparição dela e o presente.
Ao contrário do que vinha acontecendo nos livros anteriores, em Mona Lisa Overdrive os personagens humanos superam as Inteligências Artificiais em vários momentos, embora Colin, uma espécie de assistente pessoal de Kumiko, apesar de irritante, tenha sido uma adição curiosa e divertida ao time de Wintermute, de Continuidade e dos loas haitianos. Mas talvez seja na intersecção entre humanos e máquinas, carne e bits, hardware e software, que resida o maior trunfo da trilogia de Gibson. À semelhança de Virek, Angie e Bobby transcendem a condição humana e numa espécie de simbiose tornam-se parte indissociável da própria matrix, ela através dos implantes de biochip feitos pelo pai na infância e ele através do Aleph, um dispositivo com tamanha capacidade de armazenamento e processamento que é capaz de carregar uma simulação completa de toda uma realidade.
Em Mona é perceptível a evolução da escrita que Gibson parecia experimentar ainda sem pleno domínio em Count ao passo que ele retoma boa parte daquilo que mais me agradou em Neuromancer a citar a prosa sinestésica e os seus personagens complexos e problemáticos, mais ainda assim compreensíveis e adoráveis. O desfecho foi um pouco anticlimático quando comparado aos livros anteriores, mas ainda surpreende dadas as suas implicações. Para quem chegou até aqui, os jargões tecnológicos e conceituais no livro já são facilmente assimilados conforme vão sendo citados e com uma fluidez impressionante. As interações com as IAs, as descrições das cenas de simstins e as alucinações e reações desencadeadas pelas drogas sintéticas se tornaram maravilhosos lugares comuns, onde nos sentimos em casa e sem nenhum estranhamento enquanto o enredo se desenvolve. A edição brasileira mais recente é da editora Aleph e conta com tradução de Carlos Irineu, que assim como os volumes anteriores foi revisada e readequada para o lançamento em um novo box com projeto gráfico assinado pela Desenho Editorial e com artes de capa de Josan Gonzalez, mas o livro também se encontra disponível de forma avulsa.
Acredito que apenas quem tenha gostado muito dos livros anteriores ou tenha ficado curioso por mais do mundo cyberpunk de Gibson vá se aventurar até o volume final da trilogia e ainda que ele apresente alguns problemas, ouso dizer que Mona Lisa Overdrive coroa com êxito a saga, tanto por se aprofundar nas consequências dos livros anteriores quanto por manter todas as muitas possibilidades daquele mundo em aberto. A matrix é agora algo vivo e em constante evolução, e fomos nós, como espécie, brincando de deuses e cowboys em meio a nossa própria ruína quem tornamos isto possível, naquele maravilhoso instante “quando isso mudou”.