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Fugitiva

Ao ler os contos de Alice Munro, pode-se compreender facilmente o motivo de ela ter sido a primeira autora contista a receber o Prêmio Nobel de Literatura, com isso colaborando para que o conto da sombra do romance.
O conto, essa construção compacta e poderosa que, no dizer de Cortázar, ganha do leitor por nocaute (enquanto o romance ganharia por pontos), torna-se ainda mais potente na linguagem de Alice Munro. São detalhes minúsculos, acontecimentos prosaicos, tramas simples que, aos poucos, compõem um quadro existencial e psicológico dos mais penetrantes, capazes de desestabilizar as certezas aparentemente mais enraizadas do leitor. E, afinal, é isso o que se espera da literatura de qualidade. — Noemi Jaffe, escritora e crítica literária

Título: Fugitiva
Título Origianal: Runaway
Autora: Alice Munro
Tradução: Pedro Sette-Câmara
Editora: Biblioteca Azul / Folha de S.Paulo
Coleção: Folha Mulheres na Literatura (vol.25)
Ano: 2017 / Número de páginas: 352


Foi praticamente por acaso que descobri as obras de Alice Munro e que ela se tornou uma das minhas autoras favoritas. Coincidência ou não é também o acaso o grande motor de mudanças em suas histórias cujas premissas aparentemente prosaicas e banais escondem uma densidade narrativa, psicológica e emocional duma contundência e agudez notáveis, das quais não se sai de modo algum ileso. Alice Munro é uma contista canadense que ganhou notoriedade mundial ao vencer o Prêmio Nobel de Literatura de 2013, um feito inédito até então entre escritores exclusivos de contos pois normalmente a Academia opta por premiar os romancistas, mas recentemente até um músico, Bob Dylan, conseguiu tal feito reavivando discussões sobre o que é, em essência, Literatura.
Toda a bibliografia de Alice é composta por contos e seus livros são uma espécie de coletâneas com vários deles reunidos. Fugitiva é talvez a sua obra mais popular, constantemente citada e referenciada, constitui um perfeito exemplo da prosa da autora além de já ter rendido algumas adaptações para o cinema inclusive pelas mãos de Pedro Almodóvar, famoso cineasta espanhol. E me lembro de vê-lo também em cena, na cabeceira da cama da personagem de Cameron Diaz na comédia romântica O Amor não Tira Férias (pessoas que pausam o filme pra ler as lombadas dos livros neles, por favor, me adicionem).
Fugitiva é composto por oito contos, não tão curtos e com boas páginas de desenvolvimento para cada um. Absolutamente todos são únicos e tem pontos fortes pesando a seu favor em termos de qualidade literária, impacto nos desfechos e originalidade da forma e nos temas abordados. Não houve um que eu tenha lido e não tenha saído impressionado ou reflexivo de alguma forma ou com algum aspecto. Destaco a seguir três dos que considero os melhores da antologia, embora já recomende a leitura de todos.
Peças é o melhor de todos. Nele uma protagonista solteirona e de gostos sofisticados que teme o julgo do vilarejo mesquinho em que vive faz uma vez por ano uma viagem até uma cidade grande de trem para se dar ao luxo de ver Shakespeare sendo encenado. Numa destas raras idas ela acaba conhecendo um estrangeiro que a ajuda e ao qual acaba se ligando por uma promessa de reencontro em um ano, quando ele estaria de volta duma viagem ao seu país de origem e esperando por ela. Neste tempo um amor platônico surge, mas após um ano o que temos é o destino pregando a mais cruel das peças neste casal, tudo dá errado, mas algo que ela só vai se dar conta muitas décadas depois, quase ao fim da vida é que nos faz perceber o quão. É de partir o coração e de ficar querendo “consertar” o mal entendido tramado pelo destino. Quantas vezes somos ludibriados por ele sem sequer nos darmos conta? No teatro da vida o que nós cabe quase sempre é o papel de trouxa.
Fugitiva, conto que abre e que nomeia a coletânea é sobre uma jovem num relacionamento infeliz, construído sobre mentiras e joguinhos de interesse com seu parceiro. A coisa muda e toma proporções mais sérias quando a protagonista se recusa a cumprir um plano bolado pelo marido para extorquir dinheiro da vizinha e decide fugir de tudo aquilo. O desfecho surpreende e me fez exclamar um “ah não!”, há correntes presas aos nossos pés que nós mesmos colocamos uma vez e depois nunca mais somos capazes de tirar. Bradamos por coragem e ansiamos o heroísmo quando na realidade somos covardes e com isso desperdiçamos as chances de mudança. Quantas vezes deixamos nossa própria felicidade nos escapar pelas mãos assim?
E Ocasião onde uma jovem estudante de latim acaba se culpando por uma fatalidade que acontece com um dos passageiros do mesmo trem que ela tomou para voltar pra casa dos pais numa longa viagem pelo Canadá. Entristecida ela encontra consolo e desabafa com um pescador por quem, tempos depois acabaria se apaixonando. É talvez o mais romântico dos contos do livro e a cena de ambos passando a noite no vagão panorâmico observando a noite e as estrelas enquanto falavam de constelações e mitologia me tocou bastante.
Merecem menção as sequências Daqui a Pouco e Silêncio que junto de Ocasião compõem a base para o filme Julieta de Almodóvar e nos quais a jovem protagonista do primeiro conto se mostra anos mais tarde como mulher madura e mãe dum bebê, novamente de volta à casa dos pais (agora avós) e depois como uma senhora já velha e de vida ativa tentando compreender as escolhas de vida tão diferentes feitas pela filha no que tange a religiosidade. Os três perfazem um ciclo completo no qual se encerra toda uma vida e as mudanças ao longo dela: jovem, mãe e velha, tal qual é comum nas histórias e mitos. Ofensas também é uma ótima peça, no qual são postos em conflito o amor maternal, dum lado pela mãe adotiva e do outro o da mãe biológica que entregou a filha para adoção e se arrependeu, tudo narrado pelo olhar sincero duma criança, é aflitivo, desconcertante e tocante ler sobre duas mulheres tão ávidas por amar e proteger, e dotadas de toda razão daquela forma.
Alguns temas são uma constante na obra de Munro e é possível notar com facilidade alguns deles, mesmo assim, a atmosfera de Fugitiva me soou completamente diferente da de Ódio, Amor Amizade, Namoro, Casamento que havia lido anteriormente. Um abrange espectros mais amplos dos relacionamentos ao longo de amplos espaços de tempo numa vida, enquanto neste o acaso do destino e a impossibilidade de escape ou mudança seja do destino ou do status quo das personagens parece ditar boa parte dos contos, mas obviamente os relacionamentos também têm grande destaque aqui. Suas protagonistas sempre são mulheres, sempre diferentes em aparência, personalidade, comportamento e postura. Nenhuma, exceto Julieta que protagoniza três contos em três fases diferentes da vida, se parece com a outra, nenhuma é rasa e é a complexidade psicológica de cada uma delas que as faz tão verossímeis e adoráveis.
Essa recorrência de temas e figuras femininas pode incomodar alguns, mas ainda que o material base para as obras de Alice seja o mesmo, os pequenos grandes momentos da vida, os contos são completamente diferentes uns dos outros e a experiência de lê-los passa longe de poder ser considerada “mais do mesmo”. Neste caso, uma dica para aproveitar melhor talvez seja ler cada um deles de forma espaçada, entre outras leituras, como fiz.
No Brasil, a autora é publicada pela Companhia das Letras e pelo selo Biblioteca Azul da Globo Livros. A edição de Fugitiva que li é da Folha de S. Paulo, parte integrante da coleção Folha Mulheres na Literatura, mas conta com a mesma tradução de Pedro Sette-Câmara do selo da Globo.
Assim como em Ódio, Amizade, Namoro, Amor, Casamento, vale o conselho para Fugitiva e acredito que para as demais coletâneas de Alice: deixe-se conquistar aos poucos pela prosa da autora que não se desnuda tão facilmente nas primeiras páginas, mas que te conduz a desfechos espetaculares e inacreditáveis dado o material aparentemente simples que Alice toma como matéria prima e lapida até entregar ao leitor um verdadeiro tesouro. A força de suas histórias reside na ressonância facilmente perceptível entre aspectos de nossa própria vivência e as situações, hábitos, escolhas e erros com os quais ela conduz suas personagens nos contos. É fácil se ver refletido neles e é difícil, neste exercício, lidar com as consequências das escolhas que você, caso estivesse no lugar dos personagens de Munro também faria. Um personagem de Alice, assim como nós, mesmo que sem nos darmos conta, nunca é apenas alguém desempenhando uma ação, ele é a somatória de todas as vivências anteriores, de todas as escolhas feitas e também de tudo que pode vir a ser a partir dali. Quão poderosa é a literatura e a prosa dela nestes aspectos. Reitero as afirmações de Cortázar e Noemi Jaffe acerca dos contos na sinopse e na potência do nocaute causado pela leitura de Munro, que recomendo fortemente e sem ressalvas.