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Como Falar com Garotas em Festas

Enn é um garoto de quinze anos que nunca se deu bem com as garotas, enquanto seu amigo Vic tem todas a seus pés. Na Londres dos anos 1970, auge do punk rock, os dois estão prestes a viver a aventura mais espetacular das suas vidas. Ao serem convidados para uma festa, conhecem as belas Stella, Triolet e Wain e descobrem mais segredos do que jamais poderiam supor. Do premiado Neil Gaiman, autor de Deuses americanos e Sandman, e adaptado e ilustrado de maneira extraordinária pelos irmãos Fábio Moon e Gabriel Bá, Como Falar com Garotas em Festas é uma graphic novel eletrizante, uma jornada sobre as descobertas do amor, das diferenças e dos mistérios que cercam o amadurecimento.
Título: Como Falar com Garotas em Festas
Título Original: How To Talk With Girls At Parties
Autores: Neil Gaiman, Fábio Moon e Gabriel Bá
Tradução: Fábio Moon e Gabriel Bá
Ilustrações: Fábio Moon e Gabriel Bá
Editora: Companhia das Letras / Quadrinhos na Cia
Ano: 2017 / Páginas: 80

Um garoto tímido e seu amigo extrovertido, Enn e Vic, em busca de diversão numa festa cheia de belas garotas. Essa é a premissa básica de Como Falar com Garotas em Festas, história contada contada pelo próprio Enn que relembra como foi ir na festa mais estranha da sua vida, bem como o começo tímido da sua vida afetiva, quando ainda era um adolescente de quinze anos.
Meu primeiro contato com esta história foi através do conto, presente no primeiro volume da edição brasileira da coletânea Coisas Frágeis publicada pela Editora Conrad. Lembro-me de na época ter ficado fascinado com os rumos tomados por uma história aparentemente simples e pela sua mistura de real e fantástico dando cor e vivacidade à experiência narrada pelo seu protagonista.
O conto foi escrito por Gaiman após duas tentativas fracassadas de compor uma história que era para ser sobre um passeio turístico inusitado. Após perder o prazo de entrega do mesmo para uma antologia para a qual fora convidado por ter se enrolado com os elementos desconexos na trama que não conseguia fechar de jeito nenhum, Gaiman ficou mordido e acabou transformando a história em outra coisa completamente diferente. Na época do lançamento de O Oceano no Fim do Caminho, o conto chegou a ser disponibilizado gratuitamente em ebook como brinde por um curto período de tempo pela Intrínseca. Ele também deu origem a uma adaptação em longa metragem com estreia prevista para 2018, dirigida por John Cameron Mitchell, estrelando Elle Fanning, Alex Sharp, Nicole Kidman, Ruth Wilson, e Matt Lucas.
Mas falemos especificamente da adaptação para quadrinhos. Os irmãos Bá e Moon, quadrinistas brasileiros aclamados internacionalmente pela excelente graphic novel Daytripper, ainda estavam envoltos na produção da adaptação de Dois Irmãos de Milton Hatoun quando receberam o convite de Diana Schutz, editora da Dark Horse, para adaptar este conto de Gaiman. Eles aceitaram prontamente se puseram a trabalhar no material, concluindo o trabalho cerca de dois anos depois.
Em entrevistas, Bá e Moon contam que além da oportunidade irrecusável de trabalhar num material original de um autor cujo trabalho muito admiram, pesou também nesta decisão a identificação de ambos com a história. Fora os elementos fantásticos, eles contam que não eram o tipo de garotos que se davam bem nas festas, e que tal como Enn, eram acanhados e atrapalhados e estavam longe de ser populares entre elas. Contar essa história através dos quadrinhos, além de lhes permitir contar uma história sensível como as que gostam de trabalhar, seria também uma oportunidade de falar deles mesmos ali, tanto que o design final do protagonista se parece um pouco com os irmãos ainda que Gaiman também tenha enviado algumas fotos suas de adolescente para servirem de inspiração.
Na HQ a história mantém-se bem fiel ao conto, mesclando elementos de fantasia e ficção científica em sua trama. Enn e Vic a princípio não sabem onde é a festa em que estão indo e acabam indo parar por engano numa outra muito diferente da que esperavam. Enquanto Vic é bonito, charmoso e tem as garotas aos seus pés, Enn mal sabe como se aproximar delas pela timidez e ao contar ao amigo sobre seus temores recebe o conselho simples de que precisa apenas conversar com elas, afinal elas não são de outro planeta. Após chegarem a esta festa e se enturmar com algumas das garotas mais belas que já viram na vida, eles vão descobrir que talvez estivessem um pouco equivocados quanto a isto.
Meus trechos favoritos e os que considero os mais impressionantes são os diálogos das garotas, fico me perguntando como eu reagiria se estivesse na pele de Enn ouvindo o que elas têm a dizer sobre si mesmas e o lugar de onde vieram. Eles são e beiram a poesia, nos causam estranhamento como acordes musicais vibrando em frequências incomuns, nos encantam como versos e estrofes e nos levam a uma viagem cósmica surreal para além do que a imaginação é capaz de criar. A dificuldade de Enn para se aproximar das garotas e falar com elas é posta a prova dum modo que dizer que elas não são deste planeta não seria nenhum exagero ainda que eu desgoste ligeiramente deste tipo de afirmação. É possível notar também que algumas delas estão tão perdidas ali quanto Enn ainda que de uma maneira diferente, não sabendo como lidar com seus corpos, suas emoções e todo aquele ambiente. Para elas, “falar” com garotos também é uma novidade.
Estas primeiras tentativas dum adolescente buscando se relacionar com o outro são mostradas de forma positiva, convenhamos, nunca é tão fácil estabelecer contato, é preciso se aproximar, ter afinidades, se deixar envolver pelo outro e envolvê-lo mutuamente até, na melhor das hipóteses, se entregar definitivamente. Para Enn isso tudo se complica não apenas pela falta de experiência e timidez, não havia como ele saber com quem ou o quê estava lidando, Wain, Triolet e as demais garotas da festa não são garotas comuns, e ele em sua inocência e ingenuidade cegado pelos hormônios em ebulição não percebe isso até quase ser tarde demais...
A arte dos irmãos brasileiros tem um quê de cartunesco com seus personagens estilizados em formas esguias e belas, com forte predominância de uma paleta de cores mais quentes em aquarela. A quadrinização é simples, proporcionando uma experiência de leitura suave e sem alterações bruscas. Os cenários são simples e algumas vezes meramente sugeridos nos quadros dando maior destaque para as expressões faciais dos personagens nas cenas.
Ainda destaco a música e a poesia como elementos marcantes na narrativa, ambas embalam a festa e os diálogos dos personagens criando uma atmosfera que por si só já nos conta uma história a parte. Vale ouvir algumas das bandas citadas enquanto lê para entrar no clima da Londres dos anos 1970 vivendo o auge da popularidade do punk rock sobretudo entre os jovens e comparar com as bandas e músicas que faziam sucesso na mesma época entre os adultos. Sex Pistols, The Clash, Bowie, Kraftwerk e até Paul Young são citados diretamente por Enn ao descrever o ambiente em que acabou indo parar.
A edição nacional da graphic novel foi publicada pela Companhia das Letras através de seu selo de quadrinhos, Quadrinhos na Cia em agosto de 2017 com acabamento em brochura simples, capa em cartão e miolo em papel couche brilhante. Como extras a edição traz um Caderno de Rascunhos com esboços e ilustrações variadas do processo de produção: do esboço a lápis à colorização em aquarela.
Como Falar com Garotas em Festas vale muito a leitura mesmo para quem já a conhece através do conto. A adaptação para quadrinhos não peca em momento algum nem pela ausência e nem pelo excesso em relação ao original e funciona maravilhosamente bem também de forma independente. Bá e Moon conseguiram transpor para ela através da sua arte a mesma fluidez e encanto, o mesmo ritmo e cadência de palavras, além de todos os elementos visuais e etéreos tão charmosos e marcantes do conto surreal de Gaiman. De leitura fácil e rápida, ela talvez deixe passar ao leitor mais desatento algumas camadas mais profundas de significados e subjetividade, vale ler e reler, vale falar mais de uma vez com as garotas da festa em busca das metáforas e da poesia. Como Falar com Garotas em Festas é um pouco sobre encontrar-se e perder-se no outro, é um pouco sobre abrir-se ao desconhecido e se deixar modificar pela experiência, é sobre permitir-se viver, experimentar e ir além, é sobre tudo o que significa amadurecer e amar e para tanto, basta falar com elas. Recomendo!