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Alerta de Risco: Contos e Perturbações

É com palavras assim que Neil Gaiman apresenta Alerta de risco, uma rica coletânea de histórias de terror e de fantasmas, ficção científica e conto de fadas, fábula e poesia que exploram o poder da imaginação.
Em “História de aventura”, Gaiman pondera sobre a morte e sobre como, ao morrer, as pessoas levam consigo suas histórias. No suspense “Caso de morte e mel”, ele nos presenteia com sua versão do mundo de Sherlock Holmes. Em “A Bela e a Adormecida”, duas conhecidas personagens de contos de fadas têm suas histórias entrelaçadas em uma releitura bastante original. “Hora nenhuma” é um conto muito especial sobre Doctor Who, escrita para o quinquagésimo aniversário da série de tevê, em 2013. E há também um conto escrito exclusivamente para esta coletânea: “Cão negro”, que revisita o mundo de Deuses americanos ao narrar um episódio que envolve Shadow Moon em um bar durante seu retorno aos Estados Unidos.
Um escritor sofisticado cujo gênio criativo não tem paralelos, Gaiman hipnotiza com sua alquimia literária e nos transporta para as profundezas de uma terra desconhecida em que o fantástico se torna real e o cotidiano resplandece. Repleto de estranheza e terror, surpresa e diversão, Alerta de risco é um tesouro que conquista a mente e agita o coração do leitor.
Título: Alerta de Risco: Contos e Perturbações
Título Original: Trigger Warning: Short Fictions and Disturbances
Editora: Intrínseca
Autor: Neil Gaiman
Tradução: Augusto Calil
Ano: 2016 / Páginas: 304


Imagino que leitores de resenhas de livros sejam pessoas que assim como eu gostam de saber onde estão se metendo antes de embarcar imprudentemente em certos tipos de leituras pelos mais variados motivos. Talvez queiramos saber quais temas o autor aborda, se sua escrita é acessível, se o investimento em tempo e dinheiro e a jornada valem a pena, se vamos nos emocionar e ser tocados no percurso. De certa forma, ler resenhas é uma forma de nos prepararmos para o que nos espera a seguir, afinal alguns livros são difíceis, outros são chocantes demais, outros simplesmente não vão valer o nosso esforço ou não vão nos interessar e assim por diante.
Na internet, quando um determinado conteúdo se mostra capaz de incomodar alguns tipos de público mais sensíveis é comum que ele venha precedido com um aviso, um trigger warning, na expressão em inglês, de que aquilo pode perturbar, causar nojo, medo, pânico e até desencadear reações físicas involuntárias. Assim cabe ao usuário avaliar se ele quer ou não prosseguir e se responsabilizar pelas consequências de sua escolha.
Em Alerta de Risco: Contos e Perturbações, Neil Gaiman se inspira nesta ideia dos trigger warnings para compilar alguns de seus textos mais recentes, outrora publicados de forma avulsa em diversos outros lugares, na forma duma coletânea de contos. Enquanto escrevo sobre ele me pergunto se esta resenha não seriam uma espécie de trigger warning para o livro, talvez sim, talvez não, mas deixo a resposta a cargo de você, leitor.
Como é comum nas coletâneas de Neil Gaiman, Alerta de Risco se inicia com uma generosa Introdução na qual ele além de nos alertar sobre os riscos envolvidos na leitura a seguir, também nos conta deliciosos detalhes de produção dos contos, que vão desde a motivação inicial, passando pelas influências, e até em quem ou no que ele se inspirou para escrevê-los. Ao todo são 24 textos diferentes, que variam amplamente na forma, extensão, gênero, estilo e voz de modo que a antologia em si constitui uma excelente amostragem da inventividade e da variedade de temas com que Gaiman costuma trabalhar em suas outras obras. Disse ali acima que gosto de ir preparado para novas leituras, mas isso nem sempre é verdade, aqui eu ignorei solenemente os alertas de risco do autor e dei um salto de fé, partindo logo para a leitura dos contos simplesmente por confiar nele e voltei mais tarde para pegar tais detalhes como um extra na Introdução. Aliás há tantos extras na Introdução que você vai até encontrar um conto extra escondido por lá! Mas comentemos logo sobre alguns daqueles que considero como os melhores contos da coletânea:
- "Um labirinto lunar" um homem e um guia escalam uma montanha rumo a um antigo labirinto que servia de ponto de peregrinação e culto de uma cidade do interior numa noite de lua cheia. Este nos fisga pela curiosidade do que vamos encontrar ao chegar lá e é de arrepiar!
- "Detalhes de Cassandra" é sobre um pintor que tinha uma namorada imaginária na adolescência, mas parece que ela não era tão imaginária assim... O desfecho é surpreendente, é mágico, quase lírico, mas ele vale também pela construção alternando passado e presente, adolescência e vida adulta.
- "As profundezas de um mar sem sol" escrita a convite pelo jornal The Guardian para o Dia Mundial da Água traz uma história trágica da perda de um filho na forma de um desabafo materno às margens do Tâmisa poluído numa tarde de chuva torrencial! Fiquei chocado com a carga emocional do desfecho, a frase que encerra o conto ainda ecoa na minha cabeça.
- "Laranja" é a história de uma menina que por dado motivo místico/químico fica laranja e em dado momento... é abduzida por aliens. A criativa história da cor, e da menina que virou cor, nos chega através das resposta dadas por sua irmã a um questionário de interrogatório. Me surpreendi com a forma original escolhida por Gaiman para contar e em como o conto ficou bom desta forma.
- "Um calendário de contos" doze pequenas histórias escritas com base em sugestões criativas dadas por usuários do Twitter em respostas a perguntas de Gaiman. De Janeiro à Dezembro tem de tudo aqui: foi pra rir, chorar, amar e emocionar!
- "Terminações femininas" é uma carta de amor arrepiante escrita por uma estátua para a mulher por quem ela se apaixonara louca e perdidamente. Embora o conto seja bem anterior, há fortes paralelos entre ele e o relacionamento de Gaiman e Amanda Palmer.
- "A volta do magro Duque branco" aqui um duque entediado parte em busca de algo que lhe devolva a capacidade de se importar com o mundo e novos motivos para viver. O conto inspirado numa canção de David Bowie é uma mistura inusitada de conto de fadas com ficção científica que traz algumas belas metáforas sobre a monstruosidade da alma humana e de como o amor conforta a nossa existência.
- "Cão Negro" é um conto inédito e traz Shadow Moon, protagonista de Deuses Americanos, numa excelente aventura solo de volta aos EUA com cães e gatos e emparedamentos sinistros. Trazendo a excelente mistura dos hábitos americanos, do poder da crença em novos e antigos deuses, é o conto que encerra a coletânea e faz jus ao título da mesma sendo talvez o mais pesado, violento e adulto de todo o livro.
Além destes revisitei os já conhecidos “A Verdade é Uma Caverna nas Montanhas Negras”, um conto soturno sobre vingança e busca pela verdade na paisagem sombria e montanhosa da Escócia, que ganhou uma versão ilustrada por Eddie Campbell e “A Bela e a Adormecida”, uma releitura de dois contos de fadas populares dando um papel mais ativo às princesas protagonistas e que também recebeu uma versão ilustrada, por Chris Riddell. Merecem menção também o emocionante "O homem que esqueceu Ray Bradbury", que também possui uma versão em quadrinhos e "Hora Nenhuma" conto comemorativo ambientado no universo da série Doctor Who.
A edição nacional da Intrínseca possui um acabamento gráfico simples, mas muito bem cuidado em todos os aspectos: fonte e espaçamentos confortáveis para a leitura, revisão impecável, tradução com boa fluidez, contos separados por páginas cinzas e sempre começando nas páginas ímpares com uma bela ilustração duma árvores com pássaros decorando o título dos mesmos. Surpreende notar que tantos contos caibam numa edição de apenas 300 páginas.
A variedade de estilos, narradores, personagens, gêneros e temáticas é um ponto positivo do livro, mas também pode ser algo incômodo para alguns leitores. Poesia, contos reflexivos, místicos, mitológicos, cartas de amor e demonstrações de amor em forma de homenagens, drama de amor adolescente e o drama do fim do universo, contos de fada à moda antiga e também com ares de modernidade, sem falar em terror e em ficção científica... há de tudo em Alerta de Risco! Saí satisfeito da leitura da maioria deles, mas não posso dizer que todos sejam marcantes ou impactantes como o título sugere embora nenhum tenda ao banal e tragam em si um pouco das muitas facetas de Gaiman. Talvez o maior mérito dessa antologia seja justamente a sua diversidade de histórias, fruto criativo de uma mente inventiva capaz de nos levar a universos fantásticos com poucas palavras. Alerta de Risco é ideal para intercalar leituras maiores ou para aqueles momentos de pressa do dia a dia em que você não quer abrir mão da magia e de atravessar o limiar da realidade rumo ao desconhecido.