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Memórias Póstumas de Brás Cubas

Quando penso na minha vida de leitor, confesso que nenhum outro livro de língua portuguesa me impressionou tanto como este Memórias póstumas de Brás Cubas. Não apenas pela situação insólita de ter um defunto como galante autor, o que significa acompanhar a sua alma leve e sardônica por uma existência terrena feita de ilusões e fracassos.
O assombro que senti estava na agilidade técnica de Machado (1839-1908) , revolucionária para a época; no gosto pela subversão da Literatura (com maiúscula) e de todas as suas convenções (românticas, realistas, não interessa); e, finalmente, na capacidade de Machado em transformar a miséria da natureza humana – nossas vaidades; nossas mentiras; nossos amores por mulheres que retribuem o sentimento “durante quinze anos e onze contos de réis” – em material simultaneamente popular e erudito, lúgubre e jovial, pessimista mas libertador. Se hoje escrevo, em parte devo-o a este “livro que cheira a sepulcro”. E como é doce o odor dos vermes! - João Pereira Coutinho Professor e colunista da Folha
A Coleção Folha Grandes Nomes da Literatura traz ao público 28 ilustres autores da literatura mundial cujos clássicos marcaram gerações de leitores. Entre eles estão Machado de Assis, Fernando Pessoa, Eça de Queirós, Oscar Wilde, Virginia Woolf, Joseph Conrad, Tolstói e outros renomados autores.
Título: Memórias Póstumas de Brás Cubas
Coleção: Folha Grandes Nomes Da Literatura (vol.18)
Editora: Folha de S.Paulo
Autor: Machado de Assis
Ano: 2016 / Páginas: 380


Entre os grandes clássicos da literatura mundial, sinto que tenho uma enorme dívida a pagar com os autores nacionais. Confesso ter lido pouquíssimos mesmo quando era obrigado para as aulas no ensino médio e para os vestibulares que prestei, mas essa é uma falha que pretendo aos poucos sanar. E nada melhor do que começar com um autor aclamado que já conheço e aprecio, sobretudo por O Alienista, que achei simplesmente fantástico quando há não muito tempo li pela primeira vez. Memórias Postumas de Brás Cubas é considerado como o mais representativo romance de Machado de Assis e é tido pela crítica como um dos livros mais influentes e inovadores da literatura nacional brasileira.
Como o próprio título já denuncia, este é um livro de memórias e portanto narra as lembranças de seu personagem principal, Brás Cubas. Outrora um membro da classe média e da elite política carioca do século XIX, Brás Cubas hoje nada mais é do que um cadáver, um defunto autor. É do túmulo e do além que a sua alma inquieta se debruça sob as lembranças de outrora para nos relatar nesta autobiografia póstuma, dedicada ao verme que primeiro roeu as suas frias carnes, tudo aquilo que viveu, que experimentou, que sentiu e também tudo aquilo que em igual medida deixou de viver, experimentar e sentir.
Herdeiro de uma fortuna considerável ele estudou em Coimbra onde formou-se em direito. Teve diversas paixões, sendo talvez a mais arrebatadora, mas não tão duradoura a de Marcela, uma cortesã com quem viveu seu primeiro grande amor. Brás também manteve um divertido e ardil caso extraconjugal com Virgília, então casada com o político Lobo Neves, durante quase toda a vida e também provou do infortúnio do destino ao finalmente decidir se casar com Eulália.
No seu círculo de amigos o personagem mais notável é o filósofo Quincas Borbas, a quem conhece desde a infância, e que o apresenta a um novo sistema filosófico, o Humanitismo, uma espécie de crítica ao racionalismo e ao positivismo científico em voga na época, sobretudo pela teorias de Darwin. Quincas Borba ainda seria protagonista e daria nome a outro romance de Machado.
Assim é narrada a vida de Brás Cubas em episódios repletos de vivacidade aos quais se misturam reflexões e teorias, nas quais o insólito narrador não mede palavras expondo desde atitudes mesquinhas que tanto ele quanto as pessoas próximas tiveram ao longo do percurso até o túmulo. Além disso o romance faz um retrato histórico e crítico da época, com destaque para a vida das classes sociais dominantes e da situação escravista no Brasil, é famoso e perturbador o episódio envolvendo Prudêncio, um escravo liberto, ao qual Brás fazia de montaria na infância, e que reencontramos anos depois açoitando outro escravo que ele mesmo havia comprado.
O livro é dividido em vários capítulos, alguns extremamente curtos, fragmentos com não mais do que um parágrafo, o que confere ao texto uma sensação de fluidez semelhante as dos romances modernos. O vocabulário é rico, mas acessível a qualquer leitor, Machado na persona de seu narrador não usa construções frasais truncadas, nem faz descrições gigantescas. Em certos momentos o próprio narrador se reprime, afirmando que precisa se focar no que quer contar pois sente que a sua pena ganha vida própria preenchendo as páginas com o jorrar das palavras. Aliás são comuns estas pausas nas quais Brás Cubas pára a narrativa e conversa diretamente com o leitor, tentando ora antecipar as nossas emoções e ora justificar alguns pontos específicos daquilo que ele mesmo estava contando. O livro segue uma estrutura não linear, partindo dos momentos finais e da morte do protagonista, para posteriormente retomar em ordem cronológica convencional a narrativa, do nascimento, infância, juventude e vida adulta até a velhice.
Originalmente publicado de forma de um folhetim serializado ao longo de 1880 na Revista Brasileira, o romance foi reeditado pelo autor e compilado em livro tendo sua primeira edição publicada no ano seguinte, em 1881, pela Tipografia Nacional. Por ser uma obra de domínio público, é possível encontrá-la disponível gratuitamente em diversas plataformas online. A edição que li faz parte da Coleção Folha Grandes Nomes da Literatura e se baseia na edição de 2008 da editora Globo, mas não possui o Prefácio de Abel Barros Baptista. Notas de rodapé, apêndices, prefácios e demais textos críticos enriquecem a experiência de leitura e são pontos que merecem ser observados pelo leitor nas atuais edições disponíveis no mercado no momento da compra. A da Folha possui apenas as notas de rodapé, com informações suficientes para a compreensão das referências citadas ao longo do texto e me foram de grande auxílio.
Memórias Póstumas de Brás Cubas traz metáforas incríveis, ao colocar a vida sob uma perspectiva única de alguém que já não mais vive, enquanto se vale dum ponto de observação privilegiado para nos brindar com generosas doses da mais doce ironia. Seu tom melancólico e levemente nostálgico nos faz pensar que ainda é tempo de desfrutar da vida que temos, mas é inegável também o pessimismo que aflora de contemplá-la deste ponto de vista externo no qual não somos poupados da crítica à hipocrisia na qual se baseiam algumas de suas instituições mais importantes e na qual se sustentam também muitos de seus valores morais.
Não à toa, Machado é considerado um dos maiores romancistas brasileiros, sua obra tem um quê de originalidade inerente que vai além da sua premissa inusitada, que ora parece flertar com o realismo mágico, e também com as escolhas de construção de enredo e narrativa inovadoras para a época. É arte literária pura com a qual rapidamente nos identificamos dada a universalidade dos seus temas e ao charme característico e irreverente de seu narrador. Cada vez mais percebo que todo o receio que tenho com os clássicos nacionais é totalmente injustificado e se há algo para me arrepender, com certeza é de não ter dado a eles a devida atenção anteriormente. As últimas linhas de seu capítulo derradeiro são duma contundência desconcertante e me deixaram engolindo em seco diante da afirmação final de Brás Cubas. É assombroso e vale e muito a leitura!