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O Incêndio de Troia

Em 'O Incêndio de Troia', a autora recria a história da Guerra de Troia narrando-a a partir do ponto de vista de Kassandra, princesa de Troia. O livro começa com o nascimento de Kassandra e de seu irmão gêmeo Páris. Este é criado por uma família de pastores, em virtude de uma profecia de que gêmeos trazem má sorte. Kassandra cresce sem sequer saber da existência do irmão, a não ser pelas visões inexplicáveis em que enxerga os ventos através dos olhos dele. Sua mãe, a rainha Hécuba, era uma amazona antes de se casar, e quando Kassandra está prestes a se tornar mulher, é enviada para passar um ano com as tribos das amazonas, onde toma conhecimento dos poderes das mulheres antes que estas fossem subjugadas por uma nova onda de patriarcado. Ao voltar para Troia, Kassandra dedica-se a tornar-se sacerdotisa de Apolo, o Deus-Sol; mas, dentro dela, desenvolve-se um conflito forte e perturbador entre os 'velhos costumes', em que as mulheres mandavam e a religião originava-se da Mãe Terra, e o novo mundo de deuses e reis do sexo masculino - um mundo caracterizado por disputas sem sentido e uma ânsia de sangue que levam ao cerco de sua amada cidade.
Título: O Incêndio de Tróia
Título original: The Firebrand
Autora: Marion Zimmer Bradley
Editora: Imago
Tradução: Alfredo Barcelos Pinheiro de Lemos
Ano 2010 / Número de páginas 517


Marion Zimmer Bradley é um nome bem conhecido entre os leitores de fantasia, sobretudo pela sua série de livros de maior sucesso, As Brumas de Avalon. Meu primeiro contato com a escritora foi justamente através deles e me lembro de ter ficado fascinado com o universo e as personagens que ela fora capaz de criar ali. Marion publicou inúmeros outros livros e longas séries de fantasia, sendo Darkover e o Ciclo de Avalon, do qual As Brumas de Avalon fazem parte, os mais populares. Em O Incêndio de Troia ela repete a fórmula de recontar um mito antigo através da visão de uma personagem feminina, mas dessa vez sai das terras bretãs e vai para a Grécia Antiga, narrar a sua própria versão da Guerra de Troia, famosa pelo poema épico de Homero, através dos olhos de Kassandra.
O livro se inicia anos antes da guerra propriamente dita, com o nascimento da protagonista e de seu irmão gêmeo Páris. Devido a uma profecia, eles são separados e Páris é criado por uma família de pastores nos arredores de Tróia, enquanto Kassandra permanece com a família real e cresce desconhecendo a existência do irmão, embora tenha visões e mantenha um elo místico com ele. Quando Kassandra está prestes a se tornar uma mulher é enviada para passar um ano entre as tribos das amazonas, com a antiga família de sua mãe, Hécuba, que também era uma amazona antes de se casar com o rei Príamo. Com elas, Kassandra toma conhecimento dos poderes das mulheres antes que estas fossem subjugadas por uma nova onda de patriarcado, aprendendo mais sobre a origem e história daquelas mulheres e também sobre um modelo de sociedade exclusivamente feminino. As coisas começam a se complicar quando ela volta para Troia, a fim de se dedicar a Apolo, o Deus-Sol, como uma sacerdotisa do templo pois o dom da premonição com que fora agraciada é uma dádiva deste deus e ela o viu em sonhos e em visitas ao local sagrado. Dentro dela entram em conflito suas crenças e convicções sobre os modelos de mundo, masculino e feminino, e como pano de fundo temos o início aos eventos que desencadearam a disputa e o cerco de sua cidade natal ao passo que somam-se a história personagens famosos do mito grego, tais como Odisseu, Helena, Agamenon e tantos outros.
Alguns pontos me incomodaram durante a leitura, entre eles eu destaco o excesso de descrições e o ritmo lento com que a história caminhava em muitos momentos. Foi necessário fôlego para chegar à última parte que por sinal é a melhor das três que compõem o livro. Outro ponto foi o quão certos personagens eram rasos e obtusos, incapazes de ver um palmo além do próprio nariz, talvez de forma proposital, para evidenciar o contraste entre eles, Marion tenha optado pela superficialidade para alguns. Kassandra e Odisseu pareciam ser mais esclarecidos, ponderados e pensavam antes de agir e julgar se destacando muito em relação a todos os outros, ao passo que a maioria dos coadjuvantes só me dava desgosto quando abria a boca. Do ponto de vista editorial, faltou um cuidado maior com a revisão. Erros crassos saltaram aos olhos com uma frequência acima do tolerável.
O livro se encerra de forma muito satisfatória para o leitor e a última parte faz a leitura valer a pena, ganhando agilidade com as muitas pontas soltas sendo amarradas, bem como o destino de muitos personagens sendo definido, mas ainda assim, confesso que queria ter gostado muito mais dele. Embora a vida de Kassandra, a protagonista que de imediato me conquistou pela personalidade deslocada da sociedade em que vivia, tenha sido por si só perigosa e emocionante (afinal ela fora princesa, amazona, profetisa e sacerdotisa), gostaria de ter vislumbrado um papel mais decisivo para ela no desfecho da guerra de Troia, torci muito por isso, mas infelizmente esta é uma história inspirada noutra e pode ser que a autora tenha optado por manter certa fidelidade neste ponto aos poemas homéricos.
Para quem já conhece a Ilíada, o livro ainda reserva algumas surpresas já que Marion não se prende totalmente a Homero em sua recriação. Para os que ainda não, O Incêndio de Troia fornece uma base, e um pouco mais de familiaridade, para o leitor que queira se aventurar futuramente nos versos do épico clássico, acrescentando inúmeros detalhes que vão além do conflito, indo desde as práticas religiosas, aos hábitos culturais e faz um contraponto interessante à visão heroica grega tradicional, já que aqui os vilões são eles. Contudo, o que sobressai na leitura ainda é a luta das mulheres por espaço e voz em sociedades machistas, tema recorrente nas obras da autora, e trabalhado de forma magnífica também aqui, sobretudo através de sua protagonista, Kassandra, atormentada com o dom da profecia, e uma incompreendida por quase todos que a cercavam. Vale a leitura, sobretudo se você se interessa por mitos da antiguidade e por história sobre mulheres fortes, capazes de transcender o seu tempo, tomando as rédeas do próprio destino para si mesmas, mesmo quando até os deuses conspiram contra.