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Bernice Corta o Cabelo

Tudo que podemos fazer pelas pessoas é alimentá-las, diverti-las ou chocá-las. Essa frase, atribuída a Oscar Wilde, dá a tônica desta história de F. Scott Fitzgerald, de 1920, mas ainda atual, pertinente e necessária. Pela trama de Bernice e sua prima Marjorie em uma disputa por popularidade, pertencimento social, status e atenção de garotos, o leitor acompanha as peculiaridades e sutilezas do universo adolescente em seu máximo estado de tensão, com suas descobertas e frustrações.
Traduzido por Juliana Cunha e aqui apresentado em versão integral, com ilustrações de Mika Takahashi, Bernice Corta o Cabelo nos transporta a um momento da história marcado pelo jazz, pelos bailes e pelo dinheiro. O conto escancara o jogo das relações sociais de um grupo de adolescentes ricos: o ambiente em que cada um se encontra, onde são vistos, notados, e avaliados. Roupas, festas, cortes de cabelo e, enfim, palavras.
Título: Bernice Corta o Cabelo
Editora: Lote 42
Autor: F. Scott Fitzgerald
Tradução: Juliana Cunha
Ano: 2016 / Número de páginas: 96

Uma mudança radical de visual, muitas vezes marcada por um novo corte de cabelo, não é exatamente algo novo na literatura sendo este um recurso de roteiro já amplamente explorado também em seriados e novelas. Num de seus muitos contos da era do jazz, Fitzgerald faz uso deste mote para mais uma vez destacar os modismos e a futilidade que permeava a alta sociedade americana em seu período de máxima extravagância nos loucos anos 1920, mas debruçando-se agora sobre a juventude rica daquele tempo.
Em Bernice Corta o Cabelo, lançado recentemente pela editora independente Lote 42 com uma nova tradução e em projeto gráfico diferenciado, Fitzgerald trata da disputa por atenção e popularidade entre duas primas ao passo que escancara o jogo das relações sociais de um grupo de adolescentes ricos. No conto, Bernice, uma jovem interiorana de Eau Claire, Wisconsin visita a sua prima Marjorie nas férias de Agosto. Marjorie logo percebe a falta de jeito e o provincianismo de Bernice para conversar e dançar com os rapazes e a dificuldade da prima para se enturmar em seu círculo social. Ela teme que a inadequação da prima possa vir a ser um empecilho e uma ameaça para a sua escalada por popularidade nestes eventos sociais. Nenhum dos garotos, mesmo os menos populares, consegue ficar muito tempo na presença de Bernice e não querem dançar com ela nos bailes e festas de jeito nenhum chegando a fazer chacotas da jovem que consideram extremamente chata.
Voltando de uma destas festas, Bernice acaba ouvindo uma conversa particular entre Marjorie e a mãe dela, onde a prima acusa-a de ser socialmente inútil. Extremamente ofendida, Bernice ameaça deixar a cidade no dia seguinte, mas Marjorie se mantém impassível conservando sua opinião sobre a prima. Bernice então cede, concordando em receber dicas de Marjorie de como se tornar uma garota socialmente bem sucedida, popular e bem-quista nos bailes assim como a prima. Marjorie dá dicas de como flertar com os rapazes, de como manter conversas interessantes, como se vestir e como dançar, mesmo com os rapazes menos populares ou atraentes a fim de parecer mais desejável aos olhos dos outros. Tudo isso sem nenhuma pedagogia e em verdades dolorosas que Bernice ouve e acaba aceitando. Com a simples mudança de atitude, a nova Bernice passa a fazer muito sucesso entre os garotos da cidade, inclusive conquistando a atenção de Warren, um dos pretendentes que Marjorie desprezava. Bernice logo se torna o centro das atenções masculinas, sobretudo com a estratégia de declarar para todos a sua intenção de cortar em breve o seu longo e belo cabelo. Este gesto na época era algo transgressor, praticado apenas por mulheres muito conscientes da própria independência e sem medo do julgamento alheio, daí o impacto e admiração que a simples menção do corte por Bernice era capaz de causar. Quando Marjorie percebe que o interesse que Warren mantinha por ela foi transferido para sua prima, ela por ciúmes, força Bernice a cumprir a promessa e como o título do conto já denuncia, Bernice corta o cabelo. O que acontece a partir daí vocês só vão saber se lerem. :P
É curioso notar como os adultos mostrados no conto percebem o mundo adolescente com estranhamento e surpresa, escandalizados e mantendo um certo distanciamento, como se aqueles problemas de aceitação e autoafirmação vivenciados pelos jovens flutuassem numa bolha à parte do todo, num mundo particular com suas próprias regras.
Pesam sobre Bernice e Marjorie a carga social das mudanças ocorridas na maior potência econômica nas primeiras décadas do século XX. O movimento feminista ganhava força, curiosamente no mesmo ano em que o conto fora publicado o sufrágio feminino era aprovado, e o conto destaca um contraste pouco óbvio entre os modos conservadores e liberais e entre o foco de interesse social das protagonistas. Enquanto Marjorie, aparentemente mais liberal e vanguardista queria ser popular para servir e entreter os homens dos quais era carente incessantemente de atenção, Bernice, mais conservadora e recatada almejava construir relações mais duradouras e vínculos de amizade genuína entre as mulheres, considerando o casamento e os homens algo secundário.
O tom geral do conto é muito bem humorado e foi difícil não associá-lo com um dramalhão mexicano, embora em momento algum o autor peque nas críticas que se propôs a fazer. Chega a ser hilária e também absurda a forma convicta com que Marjorie busca aperfeiçoar Bernice para os jogos sociais. Sobra hedonismo e falta senso crítico, mas quem pode culpar estes jovens de serem eles mesmos, ainda que vazios em seu interior mascarado pelo contexto de prosperidade no qual estão inseridos.
A tradução de Juliana Cunha é impecável e primou pela alta fidelidade ao texto original. Algo que já havia notado em minhas leituras anteriores é o fato de Fitzgerald ser um autor clássico bem acessível. Seu texto não é rebuscado e sua prosa, mesmo rica em metáforas e ironias, está longe de ser prolixa. Juliana Cunha ainda é autora dum excelente Posfácio em que analisa o conto sob diversos aspectos, comentando trechos e passagens de interesse, que numa leitura rápida poderiam passar batidos, principalmente destacando a relação conflituosa dos papéis femininos e modelos de feminilidade presentes nas mulheres daquele contexto personificados na figura das duas primas.
O livro conta ainda com belas ilustrações de Mika Takahashi que destacam momentos chave do conto e captam com maestria as descrições e mudanças narradas no texto. É curioso notar que após o famigerado corte, mechas de cabelo de Bernice se espalham por todas as últimas páginas do conto e também como boa parte das composições já se focam nos cabelos e penteados dos personagens mesmo antes da mudança radical de Bernice. O projeto gráfico elaborado, marca da Lote 42 cujo catálogo inclui os ousados Lululux e Indiscotíveis, é de autoria de Daniel Justi e incluiu um marcador em formato de fitilho que remete aos cabelos de Bernice e tentam o leitor a também promover um corte.
Bernice Corta o Cabelo foi pensado para o público jovem, com o qual, pela temática, vai dialogar muito bem e é uma boa pedida para uma leitura rápida e casual e também uma ótima porta de entrada para quem almeja conhecer a obra de Fitzgerald, autor que como poucos soube retratar a sua época e também refletir sobre ela sem nenhuma complacência. Intrigas, vaidades e conflitos surgem como aspectos perversos da juventude carregados de significado no texto de alguém que amargou os grandes dramas, mas também soube apreciar intensamente o melhor da vida. Vale a leitura!