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O Gigante Enterrado





Uma terra marcada por guerras recentes e amaldiçoada por uma misteriosa névoa do esquecimento. Uma população desnorteada diante de ameaças múltiplas. Um casal que parte numa jornada em busca do filho e no caminho terá seu amor posto à prova - será nosso sentimento forte o bastante quando já não há reminiscências da história que nos une?
                                                                                                                                                                                                                                                                                        
Título: O Gigante Enterrado
Autor (a): Kazuo Ishiguro
Editora: Companhia das Letras
Número de páginas: 280


O Gigante Enterrado de Kazuo Ishiguro me despertou a atenção assim que o vi em evidencia nas livrarias. A capa e a sinopse eram uma tentação que somados aos comentários positivos e elogiosos da crítica especializada me convenceram a comprar aquela história de fantasia que tanto prometia.
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Ele vai nos levar a uma época de relativa paz numa Inglaterra medieval que ainda se recupera de um longo período de guerras entre bretões e saxões. Desde o fim daqueles conflitos uma misteriosa névoa se ergueu, envolvendo toda aquela região. A névoa provoca o esquecimento e os aldeões, cavaleiros e reis têm muitas dificuldades de simplesmente se lembrar. Antigos conflitos, alianças, momentos e a própria história daquela terra e daquele povo foi esquecida involuntariamente. Algumas recordações voltam em visões desconexas e de forma esporádica. Eles vivem o presente, mas não tem qualquer certeza sobre o seu passado. Somos então apresentados a Beatrice e Axl, um casal já idoso, que aos poucos vai se lembrando de seu filho e sentem uma forte necessidade de reencontrá-lo. Eles resolvem partir da aldeia em que vivem numa perigosa jornada para reencontrá-lo (mesmo naqueles tempos de paz, ogros, fadas, bruxas e outros seres fantásticos podem estar à espreita). A forma como eles se lembram deste detalhe é esparsa e vários dias transcorrem sem que o assunto lhes volte à mente tamanho é o poder da névoa em fazê-los esquecer de coisas tão importantes: as feições do seu filho, a forma como se conheceram e os dias de sua juventude, tudo é encoberto pela névoa do esquecimento.
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Foi um livro que me deixou bastante dividido e confesso que é ainda mais difícil falar de livros assim do que daqueles que gostamos de imediato.
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Entre os personagens o casal de protagonistas é o mais cativante! Não me lembro de já ter visto em nenhum outro livro um casal de idade já avançada partindo numa aventura como a deles e que remete a uma jornada do herói tardia. A dinâmica e o cuidado que eles demonstram ter um com o outro é algo muito bonito de ler. Há toda uma riqueza de detalhes sutis em suas conversas e jeito de ser que apenas casais que conviveram por muito tempo juntos seriam capazes de perceber no outro. Axl sempre trata Beatrice por "princesa" e ela sempre o procura perguntando"Você ainda está aí, Axl?" temerosa de que algo possa ter acontecido ao esposo. Curiosamente durante a viagem, ela sempre caminha à frente pois conhece melhor o caminho e ele protege a retaguarda da esposa, afinal é muito mais fácil que um predador ataque pelas costas.
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O núcleo de personagens mais jovens também se destaca. Temos Sir Gawain, um cavaleiro remanescente da época do Rei Arthur imbuído da missão de derrotar Querig, uma dragoa possivelmente envolvida com a névoa e a causa dos maiores problemas de do casal de protagonistas, Wistan um habilidoso e astuto guerreiro com uma missão a cumprir para o seu rei e o garoto Edwin que após ser mordido por Ogros passa a ser hostilizado em sua própria aldeia e é tomado como protegido de Winstan. Todo este quinteto é memorável pelas suas características que vão desde a teimosia, a honra e a altivez e em dado momento vão se juntar em torno de um objetivo comum. Na névoa da narrativa e daquele mundo, são eles o nosso chão e porto seguro sustentando o interesse com diálogos elaborados e dramas individuais envoltos em mistérios.
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Outro ponto que chama atenção é a quantidade de mitos, aspectos culturais e metáforas contidas no livro. O dilema experimentado pelos personagens entre livrar a Inglaterra da névoa do esquecimento a um preço que talvez eles não estejam dispostos a pagar, pode se relacionar à histórias como a de Adão e Eva e o fruto da Àrvore da Sabedoria do Bem e do Mal, ou ainda ao Pomo da Discórdia da deusa Éris na mitologia grega. Barqueiros que transportam seus passageiros para ilhas muito além do mundo comum remetem ao barqueiro do Hades, Caronte. Esta ilha em questão não seria uma versão da mítica Avalon? Há ainda muitos elementos tradicionais dos contos de fadas, da fantasia capa e espada, das novelas cavalheirescas do mito arturiano e tantas outras que com certeza me escaparam durante a leitura.
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A edição nacional é da Companhia das Letras e conta com um acabamento gráfico irresistível: a capa é fosca e texturizada e possui detalhes em dourado e o corte das folhas é pintado de azul. A ilustração de uma árvore antiga, com galhos secos e já sem folhas remete à algumas das características da história.
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O conceito, os personagens, as referências e o desfecho me empolgaram mas não gostei da forma como o autor conduziu a história. A narrativa parece tentar refletir o clima de incerteza que permeia aquela terra. A névoa afeta também o narrador, o que acaba tornando o desenvolvimento da trama lento, arrastado e até tedioso em alguns momentos prejudicando a minha experiência de leitura. A própria linearidade e a interação entre os personagens sofre com esta decisão e não foram poucos os momentos em que me senti completamente perdido.
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Apesar de não ter superado as minhas expectativas e de, tampouco ter sido uma leitura satisfatória em vários momentos, reconheço o valor d’O Gigante Enterrado por abordar de forma incomum as temáticas da velhice, memória, amor, guerra e morte. Certamente não é um livro que termina na última página e o desfecho é tão bom em entregar aquilo que esperei desde o início que não poderia deixar de recomendá-lo mesmo assim. Minha dica é para que você não espere por uma fantasia pé-no-chão e esteja aberto para as mais diversas interpretações subjetivas que ele suscita.